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segunda-feira, outubro 31, 2005

tratado secreto da medicina # 11 

lá fora as pessoas passam levando guarda-chu
vas como línguas içadas – e eu aqui
oculto nestes lábios sem nada
sem espaço onde caber
dividido de mim próprio como duas luas num
céu sem começo dissipando-se em vapor
a minha pele inicia a progressiva separação do
torso
meu torso de imobilidade impossível

quinta-feira, outubro 27, 2005

tratado secreto da medicina # 9 

hoje
se chove e o rio se arruina transformando-se
no algodão de conchas que o mar lhe oferenda
é porque a lua
apesar de horizontal
mantém a sua rota o seu imbecil trajecto
o seu rosto de asa voadora
arrastando-se sobre as recém-nascidas casas
não quero olhar para nada sonho com uma
chávena de chá e sinto-me como uma árvore a
caminhar entre algas
até os semáforos cheiram a maresia
e todos os poros desta pele aquática se
arrepiam fazendo do corpo uma espécie de
baía – um cotovelo a aninhar-se sem vento

tratado secreto da medicina # 9 

como um sopro de violoncelo
que expande
o corpo frágil do violoncelista assim vejo a
pequena mão da criança que ri
ao sonhar a face tremida do pai que chora
à distância
embarcado sem nave vibrando – alinhando os
órgãos vitais que sopram
de um violoncelo
para dentro do corpo frágil do violoncelista

a mão da criança é a cama imensa onde o sol
se põe

quarta-feira, outubro 26, 2005

tratado secreto da medicina # 8 

é triste e leve a memória que os filhos
guardam das mães inventadas – infância de
mães secretas – mães cobertas por uma ténue
poeira de chuva – mães abertas
pele que um dia se desfaz primeiro prata na
adolescência depois cobre na maturidade que é
torpe e analfabeta
ao crepúsculo a verdade desobedece e o
esquecimento adensa-se na boca de uma luz
projectada – um amor que não chegou
[ou que foi demais]
os filhos guardam da infância a memória de
uma mãe quieta e com a noite e o vento que
cai
a memória – mais que oca – é angustia
desperta

terça-feira, outubro 25, 2005

tratado secreto da medicina # 7 

amadas espaldas que se contorcem no interior
da água mais azul no plano mais fundo no
amor que não é tudo
e por dentro da palavra onde os ossos se
enrolam como trepadeiras no mastro de um
corpo defunto – ainda o amor em pano de
fundo – lápide ou teia como sol e lua num altar
de areia – amadas pérolas que se contorcem
vértebra a vértebra em soluço

segunda-feira, outubro 24, 2005

tratado secreto da medicina # 6 

sobre ele assenta toda a matéria – rede de
pequenas candeias – fogos-fátuos levitando
silenciosos
é em seu torno que se abrem os poços e os
poros onde mergulhamos em profundidade
mexendo no corpo
e o corpo existe sobre ele e ele sobre o amor
como um grande lago masculino de palavras –
sobre ele assenta toda a não-matéria que o
desejo exala
o cérebro aguenta tudo – todo o peso
todo o desgosto
é sobre o cérebro que assenta o lótus
insurrecto

tratado secreto da medicina # 5 

ao joão rui de sousa

há que plante flores e deseje
que delas cresçam como árvores cheirando a
incenso ovos de sândalo despertando sabores e
desejos que jamais se repetirão
há neles – nos plantadores – espinhos como
cilícios no peito chorando rosáceas sobre a
barriga e olhos em comoção permanente – há
quem entregue aos deuses os filhos de tão pura
floração

quem
chore
– há
quem sorria ao ver quebrar a ténue membrana
de um ovo de sândalo e ame
absolutamente
há quem beije flores gotejando espadas – há

quinta-feira, outubro 20, 2005

tratado secreto da medicina # 4 

os dedos
preciso de deles
parece uma coisa simples – não é – não é
porque são a fonte de todas as coisas simples
que o corpo inscreve ao seu redor – não é
simples porque a simplicidade é a grande
cabeça de medusa
o dragão que só os anjos vencem quando estão
com febre
os dedos
não são coisas mas fazem coisas
os meus estão amarelos do fumo é com eles
que pego nos cigarros enquanto ardem
para dentro de mim
queria ter sempre dedos
e isso não é uma coisa simples

quarta-feira, outubro 19, 2005

tratado secreto da medicina # 3 

é um som que entra pelos olhos como uma
cornucópia com dentes direita ao cérebro é um
ruído surdo
como umas mãos por dentro a silabar poemas
de amores perdidos
as cores são intensas que ofendem a ordem dos
ossos que se desarticulam em dor em
alucinação
a cefaleia é a raiz do verdadeiro amor
a cefaleia é a consumação última do amor
antes da morte
a cefaleia é a dor última da morte antes do
amor

terça-feira, outubro 18, 2005

tratado secreto da medicina # 2 

qual será o teu futuro – menina ainda não
entristecida respirando as primeiras folhas
de pólen dessa árvore de pulsações indistintas
a que um dia chamarás mãe
?
olho-te recém-
-nascida e não consigo deixar de pensar que
esses olhos que agora são tão longos e amáveis
estarão
um dia
estendidos sob a terra
fechados para tudo
e no entanto serás tão recém-nascida nessa
altura como hoje – três dias depois de nascida
tão bela no teu branco esquife de diamante e
mármore

segunda-feira, outubro 17, 2005

tratado secreto da medicina # 1 

o corpo é branco como branco é o beijo de
hálito leve junto aos espelhos da casa dos
grandes sabores onde o imperador dos
meridianos adormece mal cai a luz oculta da
tempestade
no jardim dessa casa há plátanos cheios de
ondas e neblina
enquanto não te beijar suportarei esta dor nas
ancas ao sol
à minha volta cerro o acesso à minha pele – o
corpo é branco como um vestido
um beijo
de hálito leve junto à luz lunar na casa dos
grandes odores onde o imperador dos pontos
desperta ingressando no mais profundo
escuro

domingo, outubro 16, 2005

tratado secreto da paisagem # 40 

olha com atenção o horizonte
repara como perfaz uma aresta perfeita
o mundo é um cubo
e quadrado o olhar que podemos
é por termos esta existência cúbica
que aspiramos à altura das grandes esferas divinas
o mundo é um cubo
o sol uma esfera
o sol um deus
a terra uma esperança aguçada
olha para o horizonte querido ogre
decora a sua espada
depois
depois cruza o olhar com os raios
com que o som – vertical – apunhala
e nessa cruz desenhada
ogre
entra na água e
nada e nada e nada

tratado secreto da paisagem # 39 

hoje o espaço não existe
o espaço
é só espaço
e o que o nele habita é o zero
da transfusão venosa corpo a corpo
hoje não há habitantes secretos
nem explícitas constelações
humanas flutuando
com a música das esferas oculares
o metal
está frio
e a água inunda-me o interior dos pés
o espaço é o que não se desenha
nem se escreve
o espaço é o olho marítimo
que observa o naufrágio
das naves no sal
e ajuda os afogados
na sua débil respiração
não há espaço
é domingo
só musgo e desolação

sábado, outubro 15, 2005

tratado secreto da paisagem # 38 

a minha boca ainda te chama
os dedos a saliva
os vasos sanguíneos onde plantámos avencas
ainda estão obstruídos pelo
líquido amniótico
que sorvemos como um poema
escorrendo entre nós

ter morrido dá-me uma visão vegetal
do nosso amor
sinto-te como se um
cantor se tivesse instalado no cérebro
no lugar
onde antigamente as cefaleias
corroíam os momentos
de estarmos juntos
e sobre tudo isto a paisagem a imensa
paisagem de espigas cor-de-rosa
espigas de cereja
que nos serviram de cama
içadas à tempestade como um tremendo relâmpago
disparando pérolas sobre o mar
depois da morte
um cubo é um cubo e tu és tu
esplendorosamente calmo – vejo-te
gritando mudo as orações da tarde
eu ouço a mudez com que me chamas
e tento responder-te enquanto ainda habito este
lugar intermédio
só me ouvirás daqui a muitos anos
quando tudo o que me compõe já se tiver
desagregado por completo
aí sim estaremos juntos

ligados por um fio transparente
teremos descoberto as letras
caligrafadas por um deus menor
do tratado secreto da paisagem

sexta-feira, outubro 14, 2005

tratado secreto da paisagem # 37 

a abelha tem a flor como sua
máxima confidente e a flor
os lábios da abelha a suprema
traição
flor e abelha confessando-se ardentemente
num pequeno
mísero
português
campo de batalha
e de uma para outra correm as palavras-
-segredo sublimes aeroplanos
hélices africanas
zebras – entre a flor e a abelha
há um mundo de lençóis usados
e sangue por abrir
entre a flor e a abelha há a metáfora
católica da gravidez
e entre a flor e a abelha o imenso lago
absurdamente

quinta-feira, outubro 13, 2005

tratado secreto da paisagem # 36 

dou por mim apoiado sobre duas grandes colunas
vestido com o meu fato de operário
coisa que nunca fui
?é um sonho – não sou dado a essas coisas
o sonho é só para os outros
mas nesta imagem é tudo tão inegável:
as colunas eu o rio este fato... tudo tão tudo
mais do que sentir-me
dou por mim
apoiado
vestido com o meu fato de operário
coisa que afinal
talvez tenha sido
quando há anos
pontualmente fui feliz pensando que amava
?é um sonho – se é
é o meu sonho operário
flor de asas e capacetes

tratado secreto da paisagem # 35 

o amor resvala até ser só esqueleto
preso por cordas numa câmara escura
dantes
tinha asas
e dentes
unhas com sangue por baixo
ao fim da tarde via cavalos ao longe
baixando a cabeça numa espécie de pasto
e dantes nem foi ontem nem é hoje
nem um futuro marcado a vermelho
num número de calendário
dantes és tu
era ou é ou será
tu
infusão onde o meu coração cresceu e se fez
tisana de olhos brilhantes
por isso dantes
tinha dentes e asas – unhas com sangue por baixo
e via cavalos ao longe a quem chamava gente
até que
o amor resvalou
tu
o tempo
e
eu preso por cordas numa câmara escura
vomito este cheiro fétido
a porcelana a que chamam vida
ou existência ou lucidez

um dia
não sei se no passado se agora se no futuro
num «tu» – que é a minha única medida de tempo
hei-de ter uma casa-cama aonde regressar
um lugar aberto e almofadas quentes
nesse dia
hei-de entrar por uma porta branca
conduzido pela tua voz doce
cheirar-te o cabelo
e devorar morangos sob um grande cristo
espetado – duplamente espetado – na parede do quarto
para
finalmente
amar o meu corpo em pequenas parcelas de beijos

quarta-feira, outubro 12, 2005

tratado secreto da paisagem # 34 

há tanta coisa na terra
antiquíssimos dejectos materiais
pirâmides imensas de um sal secular
homens tristes
rostos sem momento
sinos com pés pesados
cuspindo um tempo líquido
e pedra
só a luz é recém-chegada a este
planeta de lágrimas
e medo infligido pelos domingos

mesmo assim
neste breve tempo
em que se romperam as trevas
tudo se organizou com um hierárquico sentido
e à luz chamou-se luz do sol
esculpiram as manhãs
as tardes – inventaram o amanhecer
o crepúsculo – o entardecer
a obscuridade

as imagens agora misturam-se
e a noite é a resistência sempre derrotada
o núcleo essencial do caos que resta
a noite é o inominável
o dossel que protege os que tremem
do olho que tudo vê

a noite é o anjo

terça-feira, outubro 11, 2005

tratado secreto da paisagem # 33 

como centro ponto material
deste nosso encontro – meu querido
frio de outubro – fixei aquela praça
de lisboa onde inaugurámos a nossa
claridade sem orientação
sem pressas ou inscrições
como um traído traço de partida

desenho os cinco anos de sorriso
o teu lustro de amor – o ciclo
amado da hóstia consagrada que
partilhámos naquela cama
de oferendas
e perigosa transmissão sólida
dos corpos

quero do ar-
-te uma planta
o centro de uma frase
ou o vergão sangrento do prazer
a marcar-te o peito
mas nesta casa neste imenso tormento
nada me surpreende na infelicidade
transparente deste demoníaco chão
onde sou
mais que amante
impotente
na idêntica proporção ao que te amei
nada tenho para te dar
nem flor
nem pele
nem esse olhar horizontal
que tanto te excitava

já fui um pequeno jardim
branco de neve
à espera do teu beijo
que nunca me visitou
secaram as sementes possíveis
desta sólida condição marítima
este estado de noiva
como centro ponto material
do rosto que prometemos
de mãos dadas espetando garfos
para evitar o desejo que tanto quisemos

segunda-feira, outubro 10, 2005

tratado secreto da paisagem # 32 

quando hoje choveu cavando nos
vidros do escritório
o cântico estéril de uma água que não chega à terra
(porque não há terra na minha cidade)
soube-me bem sentar – sentir – roupa seca
e a ilusão lavada desta vida cheia de lixo

depois veio o sol
dissipando as colunas de nuvens
fez-se primavera mesmo sob
o céu pesado de um chumbo com odor a passado

só ficaram algumas marcas
afincadas aos troncos dos plátanos do hospital
por entre ambulâncias
gente a correr macas a rolar
rostos com ar de papeis por tratar

o dia acabou
a cidade acabou
tudo se dissipou na solidão da chuva
que já não verte

continuo sentado
já duvido que ela aqui esteve
que foi outono que fui vivo
ao som dos pontos físicos daquele aquoso combate
contra os vidros do escritório

continuo sentado



sentado

tratado secreto da paisagem # 31 

quando amo
o ser que dorme dentro de mim
é um corpo vão desfeito
de sois e estreitas espumas dançantes
aquáticas e vibrantes
que abrem e fecham como um pulmão
exangue – um orvalho perdido na mão
que se estende

sinto-me o calor que o aquece
que desenvolve nesse nevoeiro
o espasmo encantado de uma vida
a tempestade e os ossos em harmónica
vidência – o ser que dentro repousa
ousa penetrar-me
enquanto o amor é gradualmente mais fraco
mais doce mais distante
e
fora de mim não há nada
nem ar nem lábios nem livros
nem o sangue dos outros a libertar-se
de feridas – fora de mim não
sinto sequer o toque da pulsação inteligente
dos pássaros-abençoados-das-lagoas

esse ser que trago intramuros
é a violação de todos os perfis e segredos
o sim a todos os gemidos
um círculo-compasso desenhando
os limites das mais ínfimas propriedades
orgânicas lá
onde o céu se esvai em soluços
em maquinações geladas

entre mim e o ser que me invade
há um amor imenso
e a morte a sonhar

domingo, outubro 09, 2005

tratado secreto da paisagem # 30 

a queimadura alastra pelas paredes
férreas da uretra
os rins pararão como o cérebro parou
um dia
e se esqueceu de fluir em vagas enxutas
[homens que desistem...]

(passam em caravanas os pastores
os sacerdotes
os lamas
os filósofos
as r-o-m-ã
cistas)


mulheres alinhadas [mulheres que desistem...]
vestidas com opas azuis
vagueiam deitadas sobre bois sem dentes
estalando chicotes em feridas de um amor
cheio de sede
ajoelhadas à porta de um venoso paraíso
pedindo misericórdia

– que deus lhes
preencha os vazios aparelhos reprodutores
como um olho enche de filhos
a flamejante cavidade ocular –


obrigado senhor por esta ceia
levantem-se agora – operários
e espalhem a palavra

tratado secreto da paisagem # 29 

o poeta é um cruel
cobarde
que dança depois de ferir es
condendo-
-se no poema – fazendo-se passar
por papel impresso por mago por criança
o poeta esmaga o tudo que lhe bate
no rosto desvairado de lágrimas

à espera que tudo pare

arrastando os meses

abandonando deus num deserto
conspirações flutuantes
caídas em sangue

os nomes e palavras amantes
prendem-se aos poemas
como os filhos
se prendem às pernas
das mães fingindo acreditar que estas os protegem
quando na realidade são elas que os condenam
e assim as palavras se aninham com garras
ao poema
fingindo acreditar na protecção do poeta
que as matará
cruel
cobarde
mago negro desfeito em cinzas procurando cristos
entre as ovelhas
os poetas e os poemas são a fonte da eternidade
e os cabelos que deles crescem até que o eterno
se reduza à infelicidade
não são mais que finas correntes
que os prendem a todos os mortos
do futuro

cruéis
cobardes – os poetas não morrem
e a dor
é uma bicicleta

sábado, outubro 08, 2005

tratado secreto da paisagem # 28 

arrancando-me as consagradas
membranas da pele – a noite
e o aroma extinguem-se na paisagem
levantando o chão de outrora
sobre os meus pés
e o sangue enterra-se
nas artérias
na leveza
como estacas de roseira
como um ancoradouro de amores partidos
soprando telas
pincéis desfeitos
vigorosas lamparinas em estado de graça

toda a cama treme
e na cama o ardor
com que sinto as pálpebras a desenhar
círculos – inventados membros
dedos
unhas
pés direitos
pés esquerdos – a noite
inicia-se onde o corpo resvala
e o olhar se perde
na loucura voadora dos objectos
a ovular

sexta-feira, outubro 07, 2005

tratado secreto da paisagem # 27 

sapientíssimo grão-mestre
rei das mães e do poder de estado
flor de imensa gordura
anel de noivado – quase chuva quase charco
: passaram-se todos os anos
e não sei nada de jardins
nem de lagos não conheço as árvores
nem os peixes encarnados
se uma vez te vi é porque estavas deitado
numa cama de vime
com o olhar parado
cigarro aceso na boca a transbordar
depois esqueci-me como se esquece uma
seara depois de a comer em pão
sim
e ovos de coqueiro
desamparados
numa tarde quente
jardim botânico
lisboa
em janeiro

sapientíssimo grão-mestre
peço-te escusas dou-te vegetais
não estarei presente à hora do crime
não posso
não aceito
não preciso
não desenho
à hora do crime serei perfeito
sou perfeito
não quero prescindir deste meu inato jeito
para flor de limoeiro
como um jacto ceifando as nuvens e os anjos
num céu azul e rosicler
oh
o sol
pôs-se num envelope sorrindo
no correio

quinta-feira, outubro 06, 2005

VISÃO OBRIGATÓRIA 


cristina tavares, colagem, 2005

em AR LIQUIDO 2

tratado secreto da paisagem # 26 

já sei
porém a dor não é menor
nem a exaltação da dor menos explícita
por saber correcta a escolha – por saber
a data e a hora em que as rosas explodirão
e com as rosas todas as coisas leves e doces

num inadiável precipício de pétalas
chorarei por mim
só por mim – cada lágrima
será o vento quente com que me tocarei

voltarei ao cachimbo
ao despedaçar das horas
e é assim porque é assim
houve uma oportunidade
houve até uma alegria possível
talvez tenhamos até existido
talvez qualquer coisa – tudo – nem interessa
houve um e o outro e os dois
e dias inteiros irrestritos e ilimitados
de um amor contínuo que hoje
é um vapor de choro e braços pendentes

não é o fim que hoje celebramos
o que hoje se comemora é o reconhecimento
físico
puro
e material
do medo

quarta-feira, outubro 05, 2005

tratado secreto da paisagem # 25 

escrevo n
a imensa prisão atlântica
espelho de algas e mar infuso
(combustão profunda rápida
quadrada)
enquanto isso descem
ou sobem
caracóis
pela linha do horizonte
vistos daqui
navios desviados de uma rota indefinida

..........se um dia se desse um eclipse solar
..........toda a gente abriria a boca e fazendo ah
..........ou
..........ah ah
..........com a garganta em juras de poema
..........mas passado o eclipse o sol
..........e a lua como vapor subindo com sombra
..........seriam apenas lentidão desfeita


a terra-planeta
abunda neste espelho de algas
e mar infuso em combustão profunda
há presentes mães futuras por todo o lado
e milhares de ovos com filhos dentro delas
prontos a eclodir a
virar a cabeça na placenta

passeando carrinhos pela trela
trágicos pais sofrem por não fluir
por deus não ter querido
a disponibilidade dos seus corações abertos
para a fecundação do óvulo
nesses corações paternais

a
te
rra
abunda e nada
nada circula

LEITURA OBRIGATÓRIA 

POR FAVOR LEIAM A AVENTURA, AVENTURA NÃO, COMO DIZER, A VIAGEM DE UM MÁRTIR, PELOS LIVROS DE MARGARIDA REBELO PINTO DO JOÃO PEDRO GEORGE NO ESPLANAR

terça-feira, outubro 04, 2005

tratado secreto da paisagem # 24 

com o peso surdo desta asa suicida
abrem-se águas nos meus laços
desenhos cruciformes numa pedra
posta ao centro
entre o rio de espadas que se inscrevem
num leito-rio sem saída e o lago
onde plantados os lírios escorrem sangue
de romã em pequenas lágrimas
assustadas brilhando sem enredo

fantasma cumpridor de invocações
superiores – em tempos deram-me um nome
depois outro outro ainda me hão-de dar
e do alto desta imensa luz sinto uma
vertigem acesa
ergue-se o caule de uma rosa morta ainda a florir

onde nasci já tudo se encobriu
antes que nasçam caravelas no meu peito
quero dormir milhares de sonos longos
e acordar um passo atrás
acordar antes deste abismo
que me fez sombra e quase [quase]
deixar a guerrilha
esta é a minha história e o meu nome
o pouco que posso ser
vertigem desperta caindo de uma asa acesa

segunda-feira, outubro 03, 2005

tratado secreto da paisagem # 23 

o gato guilhotina
taf
anões e anões e anões
guilhotina
taf
para mim não há guerra
anões anões anões
taf
mas

guerra
gato-guilhotina
taf
isto é tudo uma maneira de dizer
c-o-m-b-o-i-o
nunca mais serei filho
anões anões anões anões
e mais anões anões e anões
eu não vou há guerra
há guerra mas para mim não há guerra
taf
tudo isto é uma maneira de dizer gente crescida
nunca mais serei filho ó
anões
[anões tantos tantos anões]
não
vou
à
guerra

guerra
mas

tratado secreto da paisagem # 22 

e é branca e pesada e sorri
como um espanca-
-dor de chuva
embrulhado nas mãos
do fim do mundo até ao principio da terra

escorre

branca e pesada – espessa
gotejante
abre e fecha como uma luva
[pulmões fechados numa espécie de vulva]
um embrulho de mãos
do princípio do mundo até ao princípio da lua

escorre

seca e dura
e é pesada e escura
agarrando-se aos lençóis de
uma qualquer asa impura
ornada pela magreza absoluta de
uma cadavérica cintura

..........o sol eclipsou-se
..........a lua
..........entre a terra e essa branca e espessa criatura
..........pesada e escura

alcança-me o ar pesado
e força-me à tortura
ao espasmo
à morte lenta do precipício
de uma árvore caída e morta
com a raiz da minha altura

escorre

gotejante
como um espanca-dor-de-sangue
a cadavérica cintura
do princípio da terra até ao principio da terra
uma muralha branca e seca
desperta as pedras rotulares de
um castelo de brasas – é hamlet
abraçado à sepultura

domingo, outubro 02, 2005

tratado secreto da paisagem # 21 

há que arrumar as coisas
e as coisas caberem nas mãos e
as mãos serem sombras oblíquas
projectadas numa ilha
a dar sentido à
coragem como as gaivotas
dão sentido ao peixe
pressentido no cheiro
delas próprias projectado no mar
onde os peixes as esperam com
ferozes arcabuzes
engolidos e
espinhas-de-combate

tem que estar tudo preparado
tudo arranjado
de uma maneira providencial
absoluta
um sorriso abrindo-se
um batente de porta
e as malas e as guitarras cantantes
fechando-se como os dentes serram a pele
dos dia-amantes
até que tudo não tenha rasto
nem pegadas
nem mãos inscritas na cabeça
até que tudo seja uma invasão d
e dentes-de-leão e
pedras pre
ciosas

a despertar

sábado, outubro 01, 2005

tratado secreto da paisagem # 20 

não toquei
nunca
em nada
e queria das minhas mãos um piano
e línguas de espuma
coisas espetadas no crânio
que tivessem sabor
e olor a álcool primeiro a arder depois a evaporar
não nunca
nunca agarrei
guitarras pelas pernas –
carlos [nem
mesmo] quando tu [nas paredes] as oferecias
em cordas de violino clavicórdios de hora em hora
num dia de anos
nunca
nunca
respirei
o brilho arrastado da essência vegetal

como todos os ditadores
faço planos para os próximos mil anos
desenhos
herberto helder minha capital
antero numa banheira marat nacional
:nosso senhor
e um terreiro de penitentes
vendendo jornais com a cara de toda a gente

faço planos
de dentes lavados envés de
avantes clandestinos
vendidos meninos vestidinhos em casa
por poetas militantes mutilados e enganados

mas vi no breu das alcovas
jesus de costas que é santa rita a rir
[klaus kinski enforcado é que nunca nunca vi
nunca toquei
nunca respirei]

e ainda...
joão villaret passando na sua procissão
meu divino são
josé

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