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terça-feira, abril 05, 2005

quarenta romances de cavalaria # 27 

# 27 – terça-feira

DESDE A MORTE DO MEU AMO faz agora quatrocentos anos que tenho vivido descansado na ilusão de que com ele tinham morrido os romances de cavalaria têm sido séculos calmos gradualmente voltei aos meus afazeres quotidianos apesar de há muito ter deixando esse lugar da mancha cujo nome não quero recordar vivo num pequeno apartamento de duas assoalhadas mais casa de banho e cozinha nos arredores de lisboa tenho uma razoável colecção de selos e bilhetes de autocarro com números capicua e gostava que a minha vida pudesse terminar sem grandes sobressaltos pelo menos que não voltasse tudo para trás que não tivesse que me confrontar de novo com a peste dos romances de cavalaria há quatrocentos anos desde a morte do meu amo que fujo dessa peçonha como deus fugiria de um irmão gémeo quando chegaram às minhas mãos estas novas páginas perfeitamente capazes de inspirar a juventude aos mais funestos actos de nobreza cavalheiresca todo eu tremi e talvez tenha envelhecido mais neste último mês que em quatro séculos de vida esta madrugada resgatei de um caixão escondido na garagem do prédio a lança o elmo e as barbas do meu amo que desgraçadamente contra a vontade da santa igreja o excomungado miguel perpetuou naquele imundo folhetim contra o qual nem eu nem a divina providencia podemos erguer as nossas espadas tal não foram as audiências a fama a celebridade que aquele diabo conseguiu fazer projectar sobre as suas páginas de mentiras e calúnias não estranhem que fale tanto da morte do meu amo mas é do fundo do meu coração que vos digo que a noite do seu estertor foi o momento mais feliz da minha vida no entanto apesar da alegria que senti com a sua morte por causa daquela estuporada novela vi-me obrigado a emigrar tive que refazer a minha vida do nada como motorista de praça e pouco a pouco conduzir os meus dias a uma quase normalidade consegui esbater a minha pronúncia castelhana e só alguém com um ouvido excepcional notará algum acento diferenciado na minha fala e julgo que no máximo pensará que sou galego ou transmontano era já quase manhã e ainda estava sentado na sala de jantar com as alfaias de cavaleiro e as barbas do meu defunto amo depositadas sobre a mesa da santa ceia e entre os meus dedos a inundar-me o coração de negro o envelope sem remetente contendo estes quarenta novos romances de cavalaria não imagino quem está por detrás disto nem como podem ter descoberto a minha verdadeira identidade e local de residência o facto é que alguém que não se acusa recomeçou o processo e não se esqueceu de atormentar os últimos dias da minha velhice sem um pingo de compaixão já é noite e continuo aqui encharcado de pânico sabendo que não vale a pena destruir esta velha lança e elmo nem queimar estas barbas ao fogo porque mais tarde ou mais cedo outra lança seria forjada outro elmo esculpido outras barbas cresceriam no focinho de outro amo mais uma vez serei repescado para a tortura das torturas podem chamar-lhe intuição mas aposto a cabeça dos meus filhos em como depois deste sinal dado alguém vindo não se sabe de onde me baterá à porta para me obrigar outra vez ao lugar de escudeiro mas não conseguirão quando essa sombra escura e diabólica chegar já terei arrancado a cabeça e se o resto do corpo tiver forças ainda a espetará na ponta da velha lança para que saibam da minha revolta_

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