segunda-feira, junho 28, 2004
ANTECIPADAS JÁ!
sexta-feira, junho 25, 2004
na janela indiscreta
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
a empresa # 40
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
as coisas não são o que são
o meio do dia não é a meio
das horas diurnas
os espelhos não contêm reflexos
e se a tua cara de espanto se apagou
é na minha morte que me isolo para te enfrentar
fugindo para baixo
para esse lugar de adultos onde não há formas
nem oliveiras ou aviões
nem todas as flores que prometeram plantar no paraíso
se soubesses como estou paralisado de medo
como as minhas mãos se perderam como ferramenta
dos braços
se soubesses como gostaria de sacrificar a um deus honrado
(este que me apresentaste naquele
lugar de mulheres morango em
escorrimento de nomes nas ancas
é um deus tão ruído tão histeria)
como posso eu aliviar em fogo um cordeiro
se deus é português e usa um cachecol pátrio
pingando-lhe dos beiços
babando dia e noite sobre uma bandeira republicana
que lhe serve de babete
deus é um português com uma corneta
e afinal – depois de tanto isto – talvez este mundo
nem tenha
ainda
sido visto
as coisas não são o que são
o meio do dia não é a meio
das horas diurnas
os espelhos não contêm reflexos
e se a tua cara de espanto se apagou
é na minha morte que me isolo para te enfrentar
fugindo para baixo
para esse lugar de adultos onde não há formas
nem oliveiras ou aviões
nem todas as flores que prometeram plantar no paraíso
se soubesses como estou paralisado de medo
como as minhas mãos se perderam como ferramenta
dos braços
se soubesses como gostaria de sacrificar a um deus honrado
(este que me apresentaste naquele
lugar de mulheres morango em
escorrimento de nomes nas ancas
é um deus tão ruído tão histeria)
como posso eu aliviar em fogo um cordeiro
se deus é português e usa um cachecol pátrio
pingando-lhe dos beiços
babando dia e noite sobre uma bandeira republicana
que lhe serve de babete
deus é um português com uma corneta
e afinal – depois de tanto isto – talvez este mundo
nem tenha
ainda
sido visto
quarta-feira, junho 23, 2004
a empresa # 39
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
em memória de jorge peixinho
procura-me nessas roupas lavadas junto à cama
arrasta-me nesses três pedaços de carne para junto
da porta
que todos possam passar ao lado e
agradecer os cânticos de oferenda
peixinhos compositores para piano e banda magnética
desenhando círculos paralelos ao teu redor de deusa
devora o resto das minhas mãos no palco
no alvo da minha transparência apagada
um disparo a dois
no
máximo dois disparos
sim
no máximo
e a camisa aberta deixa o teu ombro esquerdo ver-se
quase o peito nele o coração e uma medalha
tens bigode pequeno homem de prata?
sim
responde soprando de dentro d’água corolas de vidro batido
em memória de jorge peixinho
procura-me nessas roupas lavadas junto à cama
arrasta-me nesses três pedaços de carne para junto
da porta
que todos possam passar ao lado e
agradecer os cânticos de oferenda
peixinhos compositores para piano e banda magnética
desenhando círculos paralelos ao teu redor de deusa
devora o resto das minhas mãos no palco
no alvo da minha transparência apagada
um disparo a dois
no
máximo dois disparos
sim
no máximo
e a camisa aberta deixa o teu ombro esquerdo ver-se
quase o peito nele o coração e uma medalha
tens bigode pequeno homem de prata?
sim
responde soprando de dentro d’água corolas de vidro batido
terça-feira, junho 22, 2004
a empresa # 38
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
queria que soubessem
com toda a violência
que já não me sinto ligado a vós por nenhum juramento
nem sequer por uma simples vontade de estar ao vosso lado
já parti de ao pé de vós
e é tão bom deixar-vos
não me sinto obrigado ao silêncio
morri para os vossos múltiplos abraços
para os vossos estranhos passos
ri-me
por fim
das vossas caras sérias
das vossas palavrinhas tão bem silabadas
despeguei-me da mortalha que vocês eram para mim
deixo-vos espalhados na estrada
com esses membros adultos que de tanto crime
desaprenderam de controlar
fico a ver-vos estrebuchar
mão deitada à garganta
pés ao lado
que bom ver-vos assim rebentados
meus sonhos antigos de campos azuis
espalhados de algodão
com anzóis e iscos e marcas nos ramos das árvores
retorcidas
da minha pequena cama
de todas estas mortes só guardarei
o segredo
queria que soubessem
com toda a violência
que já não me sinto ligado a vós por nenhum juramento
nem sequer por uma simples vontade de estar ao vosso lado
já parti de ao pé de vós
e é tão bom deixar-vos
não me sinto obrigado ao silêncio
morri para os vossos múltiplos abraços
para os vossos estranhos passos
ri-me
por fim
das vossas caras sérias
das vossas palavrinhas tão bem silabadas
despeguei-me da mortalha que vocês eram para mim
deixo-vos espalhados na estrada
com esses membros adultos que de tanto crime
desaprenderam de controlar
fico a ver-vos estrebuchar
mão deitada à garganta
pés ao lado
que bom ver-vos assim rebentados
meus sonhos antigos de campos azuis
espalhados de algodão
com anzóis e iscos e marcas nos ramos das árvores
retorcidas
da minha pequena cama
de todas estas mortes só guardarei
o segredo
sábado, junho 19, 2004
a empresa # 37
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
um
há as pequenas palavras
os cálices
maçãs verdes e peras
há a memória entreaberta do partir das nozes
em família e amêndoas
quebradas em cacho
para ti
dois
é bom sentir-te a espalhar creme sobre o bolo
ver os ovos enfiarem-se nos pequenos
santuários de sumo aguardando
o cristalizar dos dentes entre o açúcar e
os paus amarelos de canela
três
os tendões das mãos ajudam os dedos a colocar garfos
e facas em paralelos caminhos ao redor do lago
do prato
e são as tuas mãos finas que fazem transbordar
o vinho no jarro
como um filho que entra
na mãe e nela transborda
quatro
chávena de café
último beijo depois do jantar
não acontecido
um
há as pequenas palavras
os cálices
maçãs verdes e peras
há a memória entreaberta do partir das nozes
em família e amêndoas
quebradas em cacho
para ti
dois
é bom sentir-te a espalhar creme sobre o bolo
ver os ovos enfiarem-se nos pequenos
santuários de sumo aguardando
o cristalizar dos dentes entre o açúcar e
os paus amarelos de canela
três
os tendões das mãos ajudam os dedos a colocar garfos
e facas em paralelos caminhos ao redor do lago
do prato
e são as tuas mãos finas que fazem transbordar
o vinho no jarro
como um filho que entra
na mãe e nela transborda
quatro
chávena de café
último beijo depois do jantar
não acontecido
sexta-feira, junho 18, 2004
a empresa # 36
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
experimentei o nevoeiro do meu hálito contra
um espelho tríptico num prego
sinto que as manhãs são as mesmas
que os pés descalços no chão frio da tijoleira
sentem o tremor líquido do barro a desfazer-se
o meu rosto fixa-se na janela do meio
aquela reservada à barba a ser retirada
e é como se o mar alastrasse dentro do meu peito
e não é dor
nem sequer uma magnífica lembrança
são as cinzas de todas as coisas que eu sou
na circulação dos pulsos
no sopro dos meus lábios invocadores
no vermelho das palavras necessárias para descolar
os olhos
os dedos
e todos os laços do corpo
como se desfolhasse as pétalas lilases das vestes nesta
quase noite
ilimitada
abrindo-se sobre mim
frente a este espelho ternário
a minha vida é um escorrer de fins a abandonar
lugares
busco o milagre na ponta
aguda
de uma agulha-pêndulo
a circular
experimentei o nevoeiro do meu hálito contra
um espelho tríptico num prego
sinto que as manhãs são as mesmas
que os pés descalços no chão frio da tijoleira
sentem o tremor líquido do barro a desfazer-se
o meu rosto fixa-se na janela do meio
aquela reservada à barba a ser retirada
e é como se o mar alastrasse dentro do meu peito
e não é dor
nem sequer uma magnífica lembrança
são as cinzas de todas as coisas que eu sou
na circulação dos pulsos
no sopro dos meus lábios invocadores
no vermelho das palavras necessárias para descolar
os olhos
os dedos
e todos os laços do corpo
como se desfolhasse as pétalas lilases das vestes nesta
quase noite
ilimitada
abrindo-se sobre mim
frente a este espelho ternário
a minha vida é um escorrer de fins a abandonar
lugares
busco o milagre na ponta
aguda
de uma agulha-pêndulo
a circular
ruy belo no ar líquido
quinta-feira, junho 17, 2004
a empresa # 35
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
gilly – já tantas vezes extinto
entre tantos cegos no mundo
cruzado espada-lança nas tardes voadoras de lisboa
sinto-te como um respiramento oprimido
num espaço aberto de idiomas
pátria obrigatória dos soluços
essência do que ainda é ferida fractura e
focinho suplicante de um rio
atravessado de crânios com pequenas setas
de álcool em teu louvor
hoje
sacrifico uma vela amarela e nocturna
bebendo tudo num riso colossal de derrota
gilly – já tantas vezes extinto
entre tantos cegos no mundo
cruzado espada-lança nas tardes voadoras de lisboa
sinto-te como um respiramento oprimido
num espaço aberto de idiomas
pátria obrigatória dos soluços
essência do que ainda é ferida fractura e
focinho suplicante de um rio
atravessado de crânios com pequenas setas
de álcool em teu louvor
hoje
sacrifico uma vela amarela e nocturna
bebendo tudo num riso colossal de derrota
segunda-feira, junho 14, 2004
a empresa # 34
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
fui um ansioso tripulante de uma nave
sem fundo onde cresciam finas mãos de algodão
entrelaçadas ferozes e inaugurais
tornei tudo indispensável à bebida da seiva
amarga que precede o doce na taça-delubro
onde conheci a flor das acácias
o triplo beijo das espigas de trigo
a espada
o sino e
a morte do vocábulo debutante
ali mesmo
onde circulavam as moedas
os papeis – tantos
acumulados naquele presídio de
de tochas apagadas –
foi o único sítio onde não nasci
um dia encontrei morto e quente o teu corpo
sob um lenço branco onde
a menstruação se espalhava junto ao teu rosto
não acreditei que me deixavas
que partias finalmente para o poço
onde dependurado pendia o acre cheiro da besta
nunca mais vi o teu diamante luminoso
brilhando no peito do teu visco
hoje perto destas sãs raparigas
que circulam pela esquerda
contrárias
ao fluxo natural do amor
acendo sobre o colo pequenas lamparinas
na ilusão desesperada de te iluminar
cadáver de leão
fui um ansioso tripulante de uma nave
sem fundo onde cresciam finas mãos de algodão
entrelaçadas ferozes e inaugurais
tornei tudo indispensável à bebida da seiva
amarga que precede o doce na taça-delubro
onde conheci a flor das acácias
o triplo beijo das espigas de trigo
a espada
o sino e
a morte do vocábulo debutante
ali mesmo
onde circulavam as moedas
os papeis – tantos
acumulados naquele presídio de
de tochas apagadas –
foi o único sítio onde não nasci
um dia encontrei morto e quente o teu corpo
sob um lenço branco onde
a menstruação se espalhava junto ao teu rosto
não acreditei que me deixavas
que partias finalmente para o poço
onde dependurado pendia o acre cheiro da besta
nunca mais vi o teu diamante luminoso
brilhando no peito do teu visco
hoje perto destas sãs raparigas
que circulam pela esquerda
contrárias
ao fluxo natural do amor
acendo sobre o colo pequenas lamparinas
na ilusão desesperada de te iluminar
cadáver de leão
a empresa # 33
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
diz-se que cresce
à beira da água
nas margens dos rios
junto à água doce das rias
dos lagos
nas pequenas praias fluviais
shu-dag de seu nome tibetano
acorus calamus de baptismo latino
breve história do cálamo
à mesa de um café antigo
em évora
diz-se que cresce
à beira da água
nas margens dos rios
junto à água doce das rias
dos lagos
nas pequenas praias fluviais
shu-dag de seu nome tibetano
acorus calamus de baptismo latino
breve história do cálamo
à mesa de um café antigo
em évora
domingo, junho 13, 2004
a empresa # 32
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
como irei viver depois de abandonar este
lugar de trevas que me acolheu
e devolveu a um lugar de mim nas horas
cruéis de todos os terrores e amotinações
da pele da língua e do feto da minha durabilidade
aqui deixarei sepultado o invólucro floral que
precedeu sedoso a florescência da minha tristeza
ficarão as memórias indóceis dos passos
nas costas
perpetuamente tatuada
a
indistinguível indução do medo
a saliva destilada da deusa
e assim será até ao fim de todas as coisas que se vêem
se cheiram apalpam saboreiam e respiram
nascerão mastros no meu dorso
nele serão içadas pequenas bandeiras de despedida
terei bússolas a indicar mortes
a partir de hoje terei bússolas a indicar mortes
negação total do cais abrigo ou porta
as minhas sílabas serão ossos estendidos ao sol
e os meus dentes lírios azuis nos olhos de pequenas fadas
silvestres
à procura
como irei viver depois de abandonar este
lugar de trevas que me acolheu
e devolveu a um lugar de mim nas horas
cruéis de todos os terrores e amotinações
da pele da língua e do feto da minha durabilidade
aqui deixarei sepultado o invólucro floral que
precedeu sedoso a florescência da minha tristeza
ficarão as memórias indóceis dos passos
nas costas
perpetuamente tatuada
a
indistinguível indução do medo
a saliva destilada da deusa
e assim será até ao fim de todas as coisas que se vêem
se cheiram apalpam saboreiam e respiram
nascerão mastros no meu dorso
nele serão içadas pequenas bandeiras de despedida
terei bússolas a indicar mortes
a partir de hoje terei bússolas a indicar mortes
negação total do cais abrigo ou porta
as minhas sílabas serão ossos estendidos ao sol
e os meus dentes lírios azuis nos olhos de pequenas fadas
silvestres
à procura
sábado, junho 12, 2004
a empresa # 31
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
vivo habitado pela imagem dos operários
que tive em amores maquinais
nessa idade crua em que rasguei o tecido
que sustentava a tua floração
oficinal
sem defesa
no passar diário do andor aos teus pés
sob tantas bandeiras reunidas à tua volta
perfeita fada perseguida
pelos gnomos patronais
líricas notas censuradas de uma musicalidade
fúnebre digna e templária
queria escrever-te uma última carta que te
abençoasse
na despedida dos nossos corpos
que me fizesse voltar ao caos
ou pelo menos voar
mas nem escrevo
nem rio
nem ria
e esperares-me é só tortura
os martelos agudos que me apontavam a porta
ainda me esmagam a parte de superior do crânio
estimulando a produção incessante
desse líquido patriota que anuncia as estrelas
mortas
na praça de todos as concórdias silabares
sob o arco do teu triunfo reluzente de tão amansadas feras
mestras em toda a literatura
em todo o desenho
em toda a arquitectura oriental
serei salomão à porta da sua pequena arca
serei salomé à espera de morrer
serei pedro a construir com sangue europeu a sua igreja
serei o espinho traspasso do nosso coração foleáceo
da nossa derrota trabalhadora
vivo habitado pela imagem dos operários
que tive em amores maquinais
nessa idade crua em que rasguei o tecido
que sustentava a tua floração
oficinal
sem defesa
no passar diário do andor aos teus pés
sob tantas bandeiras reunidas à tua volta
perfeita fada perseguida
pelos gnomos patronais
líricas notas censuradas de uma musicalidade
fúnebre digna e templária
queria escrever-te uma última carta que te
abençoasse
na despedida dos nossos corpos
que me fizesse voltar ao caos
ou pelo menos voar
mas nem escrevo
nem rio
nem ria
e esperares-me é só tortura
os martelos agudos que me apontavam a porta
ainda me esmagam a parte de superior do crânio
estimulando a produção incessante
desse líquido patriota que anuncia as estrelas
mortas
na praça de todos as concórdias silabares
sob o arco do teu triunfo reluzente de tão amansadas feras
mestras em toda a literatura
em todo o desenho
em toda a arquitectura oriental
serei salomão à porta da sua pequena arca
serei salomé à espera de morrer
serei pedro a construir com sangue europeu a sua igreja
serei o espinho traspasso do nosso coração foleáceo
da nossa derrota trabalhadora
sexta-feira, junho 11, 2004
a empresa # 30
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
esta será a última noite da minha beleza
serei um cravo apagado
um sol líquido arrepiado
castrarei as mãos antes do poema
serei vapor
dedal de pó
linha horizontal
paisagem ardida da flora cerebral
antes de amanhecer já me terei sublimado
rasgado
espectro
a decruar a superfície da
sepultura – morada que estou proibido de visitar
e quanto mais desperto
maior o sofrimento de me mergulhar
na seda pura dos meus lábios tão crus
como foram largos
sensíveis e longínquos
tão sensíveis e longínquos como perdidos no entusiasmo
de não saber beijar
e será no fulgor desta noite que duvidarei de ti
que te aniquilarei
para
como
sempre
entronar a imagem
do que em nós não virá a ser
nesse espaço tardio das pequenas feridas
nesse ardor nesse entupimento que somos nós
a minha cabeça será deposta a norte
com toda a solenidade
e sem qualquer razão
esta será a última noite da minha beleza
serei um cravo apagado
um sol líquido arrepiado
castrarei as mãos antes do poema
serei vapor
dedal de pó
linha horizontal
paisagem ardida da flora cerebral
antes de amanhecer já me terei sublimado
rasgado
espectro
a decruar a superfície da
sepultura – morada que estou proibido de visitar
e quanto mais desperto
maior o sofrimento de me mergulhar
na seda pura dos meus lábios tão crus
como foram largos
sensíveis e longínquos
tão sensíveis e longínquos como perdidos no entusiasmo
de não saber beijar
e será no fulgor desta noite que duvidarei de ti
que te aniquilarei
para
como
sempre
entronar a imagem
do que em nós não virá a ser
nesse espaço tardio das pequenas feridas
nesse ardor nesse entupimento que somos nós
a minha cabeça será deposta a norte
com toda a solenidade
e sem qualquer razão
Michael Ackerman & Alessandra Sanguinetti
a empresa # 29
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
meu único prazer feroz de amor
é tocar lá onde os torturados evangelhos
se escreveram e as mulheres conheceram a carne
e os homens a carícia
andar vendado dado à tua compaixão
tendo-te sem saber
sem identificação oficial
dinheiro
ou casa
visto o fato branco como arroz de manteiga
e o caminho enforca-se numa faca levantada
é o passo ao lado da marcha do apóstata
meus dedos primem uma corda no trasto metálico da cruz
e fazem vibrar o que há de mais sineiro
na minha cintura
leio o salmo número nove do teu missal
aquele em que louvas a dentuça das morsas celestes
dormideiras
à babugem de um cristo com sede com seios com medo
esse cristo ovulacionário
menstruado
que nunca geme
e que tu amas tanto
a ele rezo porque ele não permitirá a tua partida
e assim me sinto vertical andor resplandecente
cristo é conforto porque sabe que é amado
meu único prazer feroz de amor
é tocar lá onde os torturados evangelhos
se escreveram e as mulheres conheceram a carne
e os homens a carícia
andar vendado dado à tua compaixão
tendo-te sem saber
sem identificação oficial
dinheiro
ou casa
visto o fato branco como arroz de manteiga
e o caminho enforca-se numa faca levantada
é o passo ao lado da marcha do apóstata
meus dedos primem uma corda no trasto metálico da cruz
e fazem vibrar o que há de mais sineiro
na minha cintura
leio o salmo número nove do teu missal
aquele em que louvas a dentuça das morsas celestes
dormideiras
à babugem de um cristo com sede com seios com medo
esse cristo ovulacionário
menstruado
que nunca geme
e que tu amas tanto
a ele rezo porque ele não permitirá a tua partida
e assim me sinto vertical andor resplandecente
cristo é conforto porque sabe que é amado
quinta-feira, junho 10, 2004
votar
a empresa # 28
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
vejo-me barrado à entrada de um templo
sem mensura
à mercê dos anjos e das suas hierarquias
os mortos olham-me com as suas noites sóbrias
apalpam-me os dentes no roteiro das suas órbitas
rectificam-me o mênstruo
bebem o sangue com as mãos em concha
o tempo toca há lobos há raparigas
há a pedra do chão exterior
naquela paragem dos pés
há um transito planetário sobre o meu véu
e a luz está sem remédio atrás de mim
depositada nas mãos incendiárias de todos os felizes
e saudáveis comedores de conchas de chocolate
os verdadeiros e fieis profetas
os que sabem conhecem adivinham
o sabor doce de um amor preso
ao algodão das rochas das casas e dos sexos
os olhos dos anjos
– tão pequenos anjos de tão pequenos braços –
têm uma expressão forense
elíptica
em perfeito equilíbrio de fluidos
investigando os mais ínfimos detalhes do meu corpo exangue
há mesmo um minutíssimo pagem
que me lambe sabendo que não poderei responder
e depois desfalece
admito que feliz com o meu sabor de junho
vejo-me barrado à entrada de um templo
sem mensura
à mercê dos anjos e das suas hierarquias
os mortos olham-me com as suas noites sóbrias
apalpam-me os dentes no roteiro das suas órbitas
rectificam-me o mênstruo
bebem o sangue com as mãos em concha
o tempo toca há lobos há raparigas
há a pedra do chão exterior
naquela paragem dos pés
há um transito planetário sobre o meu véu
e a luz está sem remédio atrás de mim
depositada nas mãos incendiárias de todos os felizes
e saudáveis comedores de conchas de chocolate
os verdadeiros e fieis profetas
os que sabem conhecem adivinham
o sabor doce de um amor preso
ao algodão das rochas das casas e dos sexos
os olhos dos anjos
– tão pequenos anjos de tão pequenos braços –
têm uma expressão forense
elíptica
em perfeito equilíbrio de fluidos
investigando os mais ínfimos detalhes do meu corpo exangue
há mesmo um minutíssimo pagem
que me lambe sabendo que não poderei responder
e depois desfalece
admito que feliz com o meu sabor de junho
a empresa # 27
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
este forte sem portas onde emito vozes
de pássaro e ando sobre águas
pregando a pequenos insectos paralisados
nem é uma ilha nem um continente nem uma nuvem
mas apenas um sítio onde me prendo
às pequenas algas venenosas do que penso
leio as partes azuis de um pequeno dicionário de cores
ao lado de um cão que não me ouve
mas não me abandona
anagrama de mim mesmo
andando de flores e chapéu na mão
cambaleando de não pertencer a um deus
nem a um homem nem a um lago
estou preso a um tronco de cadáver
e até me sinto sorrir nesse impulso
verdadeiro êxodo de asas em campos de acácias
tremo em acção contrária ao ritmo cardíaco
e sinto-me suspender suster supondo
até
não morrer
já sem vida
este forte sem portas onde emito vozes
de pássaro e ando sobre águas
pregando a pequenos insectos paralisados
nem é uma ilha nem um continente nem uma nuvem
mas apenas um sítio onde me prendo
às pequenas algas venenosas do que penso
leio as partes azuis de um pequeno dicionário de cores
ao lado de um cão que não me ouve
mas não me abandona
anagrama de mim mesmo
andando de flores e chapéu na mão
cambaleando de não pertencer a um deus
nem a um homem nem a um lago
estou preso a um tronco de cadáver
e até me sinto sorrir nesse impulso
verdadeiro êxodo de asas em campos de acácias
tremo em acção contrária ao ritmo cardíaco
e sinto-me suspender suster supondo
até
não morrer
já sem vida
terça-feira, junho 08, 2004
a empresa # 26
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
outras vezes componho sulcos
intradorso acompanhando parcelas frias
do incontido momento sublime das vagas temperadas pelas dores
essa espécie de olhar branco que espalhas na minha pele de armento
logo após a fulguração suprema dos gritos
e dos sons dos dedos
todo tu te torces em rebentamentos
sob a minha música de besta perdida nas chamas
na minha música de choro-menino
primeiro triste depois esplendor
aqueces as pálpebras com as mãos
para não seres visto sobre mim
para não teres que me reconhecer desfeito
à beira da minutíssima porta da casa
onde me prendes nu e dissolvido
obrigado à tua voz
ao teu comando e cuidado
dependo de ti
tão totalmente de ti
sobre o braço o bico do lápis
arrasta o teu nome até à vela-guia
até que me sinta na posição além do limite
pronto para ser esgotado
batido
invisível
imutável e sem óculos
não te vás embora escuridão
outras vezes componho sulcos
intradorso acompanhando parcelas frias
do incontido momento sublime das vagas temperadas pelas dores
essa espécie de olhar branco que espalhas na minha pele de armento
logo após a fulguração suprema dos gritos
e dos sons dos dedos
todo tu te torces em rebentamentos
sob a minha música de besta perdida nas chamas
na minha música de choro-menino
primeiro triste depois esplendor
aqueces as pálpebras com as mãos
para não seres visto sobre mim
para não teres que me reconhecer desfeito
à beira da minutíssima porta da casa
onde me prendes nu e dissolvido
obrigado à tua voz
ao teu comando e cuidado
dependo de ti
tão totalmente de ti
sobre o braço o bico do lápis
arrasta o teu nome até à vela-guia
até que me sinta na posição além do limite
pronto para ser esgotado
batido
invisível
imutável e sem óculos
não te vás embora escuridão
segunda-feira, junho 07, 2004
a empresa # 25
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
aqui estou nesta posição intermédia
espécie dissidente da existência vulnerável
aos objectos
aos furos às posições e ao mau estado
do coração a bater depressa demais
restrito impulso de amor
sem voltar à idade dos sóis e das ardósias
o tempo levou-me às ruas mais bonitas
aos museus às celebrações da manhã
às floristas a quem pagava pelos amores-perfeitos
na companhia desse cruel adolescente que fui
inspirei o odor a café fresco das cafetarias
chaimite –
essas lojas perfumadas de café moçambicano
que lisboa acolhe como promessa duvidosa
de viagens drogadas pelos candeeiros –
lembro-me de uns bom-bons em forma de coração dourado
onde cardíacos outros três órgãos explosivos
nas três cores francesas
decoravam o seu meio
bom-bons que se partiam ao meio
como aquelas medalhas americanas que os namorados
dos filmes
trocam
partem
nos bailes de debutantes
em promessas eternas de amor efémero
esses chocolates – e que bom é ainda dizê-lo –
o meu irmão louro guardava secretamente na gaveta
direita da sua secretária de madeira envernizada
à espera que eu os roubasse
e eu roubava à espera que ele descobrisse o delito
e me amasse ainda mais
e me quisesse para sempre seu amor fraterno
amante e glorificado
esse seu quarto será para sempre a minha luz de paraíso
como te amo meu irmão perdido
e agora
vestido de preto neste deserto de pedra e covas arqueológicas
existo com a felicidade de me lembrar de ti
agarrado ao meu corpo infantil na areia de um mar
conhecido
aqui estou nesta posição intermédia
espécie dissidente da existência vulnerável
aos objectos
aos furos às posições e ao mau estado
do coração a bater depressa demais
restrito impulso de amor
sem voltar à idade dos sóis e das ardósias
o tempo levou-me às ruas mais bonitas
aos museus às celebrações da manhã
às floristas a quem pagava pelos amores-perfeitos
na companhia desse cruel adolescente que fui
inspirei o odor a café fresco das cafetarias
chaimite –
essas lojas perfumadas de café moçambicano
que lisboa acolhe como promessa duvidosa
de viagens drogadas pelos candeeiros –
lembro-me de uns bom-bons em forma de coração dourado
onde cardíacos outros três órgãos explosivos
nas três cores francesas
decoravam o seu meio
bom-bons que se partiam ao meio
como aquelas medalhas americanas que os namorados
dos filmes
trocam
partem
nos bailes de debutantes
em promessas eternas de amor efémero
esses chocolates – e que bom é ainda dizê-lo –
o meu irmão louro guardava secretamente na gaveta
direita da sua secretária de madeira envernizada
à espera que eu os roubasse
e eu roubava à espera que ele descobrisse o delito
e me amasse ainda mais
e me quisesse para sempre seu amor fraterno
amante e glorificado
esse seu quarto será para sempre a minha luz de paraíso
como te amo meu irmão perdido
e agora
vestido de preto neste deserto de pedra e covas arqueológicas
existo com a felicidade de me lembrar de ti
agarrado ao meu corpo infantil na areia de um mar
conhecido
domingo, junho 06, 2004
a empresa # 24
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
amo-te
amaríssimo lótus preso nos
pequenos
dentes
dos garfos
bebo-te
sacratíssimo lótus aberto em folhas de chá
infusão preciosa da nossa cabeça
em chávenas presas
no riso alto do céu da boca
dissipando artérias rebentadas como rosáceas
crudelíssimas rosáceas chorosas em movimento
sem suor sem cruz sem vitral
como um pequeno cão masculino
procurando o coração da obra
folheando livros de salmos à tua entrada
prefiro não te procurar nesse convento
onde não há luz nem mel nem ouro
onde os anjos se tornaram doença
ou poema
ou a tortura furibunda dos cuidados
prefiro não te ver sobre esse mosaico
de chão
onde marcham as legiões de demónios
presos por juramento ao senhor
que tu escolheste
como espírito-de-luz
amarrar-te-ei como um atilho de espigas
querido lótus e assim te abraçarei sobre a minha lápide
amo-te
amaríssimo lótus preso nos
pequenos
dentes
dos garfos
bebo-te
sacratíssimo lótus aberto em folhas de chá
infusão preciosa da nossa cabeça
em chávenas presas
no riso alto do céu da boca
dissipando artérias rebentadas como rosáceas
crudelíssimas rosáceas chorosas em movimento
sem suor sem cruz sem vitral
como um pequeno cão masculino
procurando o coração da obra
folheando livros de salmos à tua entrada
prefiro não te procurar nesse convento
onde não há luz nem mel nem ouro
onde os anjos se tornaram doença
ou poema
ou a tortura furibunda dos cuidados
prefiro não te ver sobre esse mosaico
de chão
onde marcham as legiões de demónios
presos por juramento ao senhor
que tu escolheste
como espírito-de-luz
amarrar-te-ei como um atilho de espigas
querido lótus e assim te abraçarei sobre a minha lápide
a empresa # 23
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
se eu pudesse ter decisão sobre os jardins
e as águas e todas as coisas claras que
existem sob os pés de uma mó de gente
que se extasia de tanto pisar
e roçar
a orla dos seus vestidos pelos pastos
onde babosos ociosos e petrificados
uma súcia de velhacos abençoa crianças
jamais haveriam de pisar as flores e
os animais pequenos do chão
nem sequer ouvir
os sinos da igreja sentados nos canteiros
toda essa falange repugnante de soldados ou anjos
teria de se levantar à passagem das rosas
como um balãozinho entre a ponta do polegar e a do indicador
seriam obrigados a chamar senhor a cada um dos poucos
ananases sobreviventes nem que chovesse caspa suja
nos seus bigodes presidenciais
mas nunca serei tão feliz
cada dia nunca mais será
serei sempre uma espécie de pensamento republicano
frente a um exército de porcos nacionalistas
às portas de madrid
se eu pudesse ter decisão sobre os jardins
e as águas e todas as coisas claras que
existem sob os pés de uma mó de gente
que se extasia de tanto pisar
e roçar
a orla dos seus vestidos pelos pastos
onde babosos ociosos e petrificados
uma súcia de velhacos abençoa crianças
jamais haveriam de pisar as flores e
os animais pequenos do chão
nem sequer ouvir
os sinos da igreja sentados nos canteiros
toda essa falange repugnante de soldados ou anjos
teria de se levantar à passagem das rosas
como um balãozinho entre a ponta do polegar e a do indicador
seriam obrigados a chamar senhor a cada um dos poucos
ananases sobreviventes nem que chovesse caspa suja
nos seus bigodes presidenciais
mas nunca serei tão feliz
cada dia nunca mais será
serei sempre uma espécie de pensamento republicano
frente a um exército de porcos nacionalistas
às portas de madrid
sábado, junho 05, 2004
rosto anónimo
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
a empresa # 22
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
acordo adorno duplo dobro dúplice
sentindo a tua cabeça de naja a implorar-me vida
lambendo-me a barriga
procurando o leite umbilical na frente do meu dorso
na tua presença escolho o estorvo certo para abrir os olhos
como um movimento fluvial de garras a matar
elejo o
torno
onde me aperto em assassínios multiplicados
agarrado ao corrimão da cama
como um deão ao ceptro da sua autoridade
acordo uma simples coisa
um caroço um troço um torso
um pedaço de carne sem espanto
por vezes
liberto-me da roupa enrolada na garganta
por vezes ouço-me a libertar-me da garganta
apalpando-a torcendo-a amarrando-a –
explodindo o bojo dos olhos
destruindo a sua capacidade de conter lágrimas
é assim que diariamente rompo a fonte antes
de me levantar
antes de me saber em pé
em pensamento
em clausura
em chinelos a babar as manhãs com cálices de amora
quando chego à porta já não te lembro
a língua nem o sabor dela
não te reconheço os cabelos enrolados nas foices
e nos garfos que engulo para sustentar o corpo
a fava o tojo
e
antes de trespassar o vão já não sou eu
nem voltarei a sê-lo
acordo adorno duplo dobro dúplice
sentindo a tua cabeça de naja a implorar-me vida
lambendo-me a barriga
procurando o leite umbilical na frente do meu dorso
na tua presença escolho o estorvo certo para abrir os olhos
como um movimento fluvial de garras a matar
elejo o
torno
onde me aperto em assassínios multiplicados
agarrado ao corrimão da cama
como um deão ao ceptro da sua autoridade
acordo uma simples coisa
um caroço um troço um torso
um pedaço de carne sem espanto
por vezes
liberto-me da roupa enrolada na garganta
por vezes ouço-me a libertar-me da garganta
apalpando-a torcendo-a amarrando-a –
explodindo o bojo dos olhos
destruindo a sua capacidade de conter lágrimas
é assim que diariamente rompo a fonte antes
de me levantar
antes de me saber em pé
em pensamento
em clausura
em chinelos a babar as manhãs com cálices de amora
quando chego à porta já não te lembro
a língua nem o sabor dela
não te reconheço os cabelos enrolados nas foices
e nos garfos que engulo para sustentar o corpo
a fava o tojo
e
antes de trespassar o vão já não sou eu
nem voltarei a sê-lo
para ler no MUNDO PERFEITO
sexta-feira, junho 04, 2004
o livro das revelações
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
janieta eyre
o livro das revelações
janieta eyre
o livro das revelações
a empresa # 21
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
dá-me uma pequena pancada vertebral
mostra-me outra vez as sementes de açafroeira
um deus que fosse no teu bolso
que hei de fazer minha querida árvore de sândalo
perdi o teu sopro
o mar está mais pequeno
a terra está coberta do sal-preto dos himalaias
foste tu que me falaste dos rodoendros, das ervas-das-feridas
do pó de ossos humanos com que curas os doentes
foste tu que me falaste
da
valeriana indiana
da amora silvestre
do açafrão-de-cobra
da cássia
e da absoluta necessidade de dormir
aqui a palavra pára
dissolve-se
aqui nasce a última sílaba deste local de açaimes
aros
bonecas e máscaras tibetanas
que nome darei a todo este tempo de vida
em que adormeci sempre
em que nunca me faltou o sono
este tempo em que algumas vezes levitei
que palavra posso ainda encontrar
na minha superfície desvairada
sem casco
aqui pára esta hélice de tortura
dentro do meu perfil
dá-me uma pequena pancada vertebral
mostra-me outra vez as sementes de açafroeira
um deus que fosse no teu bolso
que hei de fazer minha querida árvore de sândalo
perdi o teu sopro
o mar está mais pequeno
a terra está coberta do sal-preto dos himalaias
foste tu que me falaste dos rodoendros, das ervas-das-feridas
do pó de ossos humanos com que curas os doentes
foste tu que me falaste
da
valeriana indiana
da amora silvestre
do açafrão-de-cobra
da cássia
e da absoluta necessidade de dormir
aqui a palavra pára
dissolve-se
aqui nasce a última sílaba deste local de açaimes
aros
bonecas e máscaras tibetanas
que nome darei a todo este tempo de vida
em que adormeci sempre
em que nunca me faltou o sono
este tempo em que algumas vezes levitei
que palavra posso ainda encontrar
na minha superfície desvairada
sem casco
aqui pára esta hélice de tortura
dentro do meu perfil
a empresa # 20
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
não espero nada do meu sorriso
nem do sorriso laço dos lagartos dentro de mim
nem sequer já de ti que me espalhas em barcos e espuma
não há nada a esperar neste tempo sem flancos
nem a solidão nem a cidade nem a viagem
suportam o ar pesado que as moscas transpiram
escorre em mim um sumo de gordura como se abrisse uma ria
no peito
tenho um garrote exposto a garrotar o osso que agarra o coração
e faltam-me astros
naves
coisas ordinárias a acontecer
normalidades seguras no meu leito
pontes com algum planeta de gente
acabou-se o milagre a esperança e o sol das cores todas
o arco
o porto
o charco
acabaram-se as maçãs dos contos
os beijos doces do segredo
acabou-se o segredo
o mistério plural das miríades de solfejos e amores
retardados ao pé de ti
já não creio no universo entomológico das flores
nem as vejo já voar as horas de vida que tinham
tão borboletas que foram a morrer
e deus apareceu na pior hora de adormecer
naqueles segundos em que refazemos a vida
e vemos
como se pode ver o que se pensa real e da vida
a vida a ter sido e a desagregar-se
e com a sua aparição foi-se toda a luz dourada
das infâncias que tive
perdi-te mãezinha, mamã ou lá o que és
nem te tive papázinho do descoração morango
se tivesse tido uma irmã
poderia agora falar-lhe de úteros por preencher
e de casas vaginais a arder de sangues remotos doces amorosos
no momento antes de aparecer
se ainda te tivesse meu cão
correria no meu silêncio de dever às palavras
chamar-te
como a vizinha que brada contra o gato todas as manhãs
para ter qualquer coisa que lavar
sou uma criança sentada à porta da escola
uma escola sentada imensa e devastada
espelho de évora
monte a desaparecer
sem água
sem árvores
sem silêncio
évora ruído de lápide sem inscrições
évora luto
de tanto que ardem ainda as fogueiras do papa nos campos
e nesta roda masculina que não para acesa de tochas
eu me crucifico oco até ao próximo fim de mim
até ao ardor da rosa
não espero nada do meu sorriso
nem do sorriso laço dos lagartos dentro de mim
nem sequer já de ti que me espalhas em barcos e espuma
não há nada a esperar neste tempo sem flancos
nem a solidão nem a cidade nem a viagem
suportam o ar pesado que as moscas transpiram
escorre em mim um sumo de gordura como se abrisse uma ria
no peito
tenho um garrote exposto a garrotar o osso que agarra o coração
e faltam-me astros
naves
coisas ordinárias a acontecer
normalidades seguras no meu leito
pontes com algum planeta de gente
acabou-se o milagre a esperança e o sol das cores todas
o arco
o porto
o charco
acabaram-se as maçãs dos contos
os beijos doces do segredo
acabou-se o segredo
o mistério plural das miríades de solfejos e amores
retardados ao pé de ti
já não creio no universo entomológico das flores
nem as vejo já voar as horas de vida que tinham
tão borboletas que foram a morrer
e deus apareceu na pior hora de adormecer
naqueles segundos em que refazemos a vida
e vemos
como se pode ver o que se pensa real e da vida
a vida a ter sido e a desagregar-se
e com a sua aparição foi-se toda a luz dourada
das infâncias que tive
perdi-te mãezinha, mamã ou lá o que és
nem te tive papázinho do descoração morango
se tivesse tido uma irmã
poderia agora falar-lhe de úteros por preencher
e de casas vaginais a arder de sangues remotos doces amorosos
no momento antes de aparecer
se ainda te tivesse meu cão
correria no meu silêncio de dever às palavras
chamar-te
como a vizinha que brada contra o gato todas as manhãs
para ter qualquer coisa que lavar
sou uma criança sentada à porta da escola
uma escola sentada imensa e devastada
espelho de évora
monte a desaparecer
sem água
sem árvores
sem silêncio
évora ruído de lápide sem inscrições
évora luto
de tanto que ardem ainda as fogueiras do papa nos campos
e nesta roda masculina que não para acesa de tochas
eu me crucifico oco até ao próximo fim de mim
até ao ardor da rosa
quinta-feira, junho 03, 2004
a empresa # 19
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
enquanto apanho algas no lago da oficina
tu recortas o teu perfil na pele das minhas costas
como quem fabrica cestos com toda a dignidade
assim me torno um ser sem sujeito
salino
um dia perguntarei se existiu este lugar
e não saberei responder porque não sei se existes
se as algas existem
se existe o odor a pedra lavada dos morangos
ou o primeiro voo imaculado dos aprendizes
um dia perguntarei se existem outros lugares
onde tu pudesses ter existido
e eu
um lago
a existir que tivesse havido
não haverá resposta nem boca
nem as algas para apanhar que hoje há
e até a oficina se terá já transformado em catedral
e tudo à volta um balde
e às minhas costas bordadas
alguém dono de mim dará o nome de cidade
enquanto apanho algas no lago da oficina
tu recortas o teu perfil na pele das minhas costas
como quem fabrica cestos com toda a dignidade
assim me torno um ser sem sujeito
salino
um dia perguntarei se existiu este lugar
e não saberei responder porque não sei se existes
se as algas existem
se existe o odor a pedra lavada dos morangos
ou o primeiro voo imaculado dos aprendizes
um dia perguntarei se existem outros lugares
onde tu pudesses ter existido
e eu
um lago
a existir que tivesse havido
não haverá resposta nem boca
nem as algas para apanhar que hoje há
e até a oficina se terá já transformado em catedral
e tudo à volta um balde
e às minhas costas bordadas
alguém dono de mim dará o nome de cidade
ALMODOVAR
no Respublica
para ler no RESPUBLICA
quarta-feira, junho 02, 2004
a empresa # 18
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
para o.m.
um dia conheci um homem que falava com harpas falantes
um homem que fabricava cartolas mágicas
– desenhador de sóis que um dia foi palhaço noutro país
depois
à minha volta fechou-se o meu olhar a ele
e ele deixou de haver
quando o conheci ele voava e
aprendia a tocar flauta para abdicar de tocar flauta
como tinha aprendido a tocar banjo para abdicar de tocar banjo
e comia gelados, e tomava aspirinas para que o sangue fluísse
e ria-se, ria-se, ria-se... ia-se...ia-se...com eco
e às vezes zangava-se...gava-se...gava-se com eco
tinha uma mochila preta, e uma caneta
e um kazoo encantador de actores no bolso de uma casaca
e óculos-de-ver-ao-pé
e ria, ria, ria, ria... ia...ia...com eco
conheci-o numa noite quente
nas últimas noites quentes de évora
em que fui pessoa
num repente fundamental das horas a acontecer na pele
nessa noite tudo foi noite
e barbas e cabelos brancos
e risos, risos, risos, risos... isos...isos...isos com eco
noite em que me vi na minha pequena vida dilatada
e percebi ser possível orar às coisas boas
aos deuses do corpo
da voz
e do amor
para o.m.
um dia conheci um homem que falava com harpas falantes
um homem que fabricava cartolas mágicas
– desenhador de sóis que um dia foi palhaço noutro país
depois
à minha volta fechou-se o meu olhar a ele
e ele deixou de haver
quando o conheci ele voava e
aprendia a tocar flauta para abdicar de tocar flauta
como tinha aprendido a tocar banjo para abdicar de tocar banjo
e comia gelados, e tomava aspirinas para que o sangue fluísse
e ria-se, ria-se, ria-se... ia-se...ia-se...com eco
e às vezes zangava-se...gava-se...gava-se com eco
tinha uma mochila preta, e uma caneta
e um kazoo encantador de actores no bolso de uma casaca
e óculos-de-ver-ao-pé
e ria, ria, ria, ria... ia...ia...com eco
conheci-o numa noite quente
nas últimas noites quentes de évora
em que fui pessoa
num repente fundamental das horas a acontecer na pele
nessa noite tudo foi noite
e barbas e cabelos brancos
e risos, risos, risos, risos... isos...isos...isos com eco
noite em que me vi na minha pequena vida dilatada
e percebi ser possível orar às coisas boas
aos deuses do corpo
da voz
e do amor
a capital
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
Caro Luís Osório,
Todos recebemos com alegria a notícia da renovação da velha ‘A Capital’.
À sua volta – Luís Osório – gerou-se uma estranha (estranha para Portugal) consensualidade sobre a qualidade do seu trabalho como jornalista (e agora noutras àreas...não é verdade?) e, em consequência disso, uma alegria generalizada pelo facto de o projecto ter ficado ‘em boas mãos’.
‘A Capital’ é o jornal sobrevivente de um trio de vespertinos de eleição (juntamente com o ‘Diário de Lisboa’ e o ‘Diário Popular’). ‘A Capital’ é o que resta, pelo menos como símbolo, de uma velha e prestigiada escola de jornalismo, feita de coragem de opinião, de reflexões profundas, de seriedade editorial – de princípio editorial. Os últimos anos d’A Capital’ não foram famosos. Pior, foram terríveis para o jornal, para a sua memória, para a honra dos seus fundadores e, muito especialmente, para os seus leitores. É por isso compreensível que no caso do DL, Ruella Ramos, tivesse decidido fechar o ‘Lisboa’, não fosse a ele acontecer a mesma coisa que ao seu colega ‘A Capital’.
A vossa responsabilidade é muito grande e ainda bem. Ou conseguem criar com este novo projecto um espaço de respiração e diferença – menos que isso não vale a pena – ou ao jornal será decretada morte definitiva.
Ao ler esta ‘nova’ Capital, para além de manter a bola vermelha no título, há uma evidente preocupação em honrar a memória do que de melhor o jornal tinha, de forma a apagar a hecatombe dos últimos anos. Ao mesmo tempo fazem uma mistura com o ‘ar’ do DL, na forma de organizar as colunas, de apresentar os colaboradores, etc., mas procurando criar o desenho do que poderá vir a ser a marca deste novo tempo do jornal.
Este projecto conta com algumas facilidades evidentes para o seu arranque. Tem uma equipa pequena, gente que se conhece, empenhada num esforço de solidariedade e entre-ajuda, sem pressão de grandes tiragens (à partida). Que bom que assim é.
Para que o trabalho continue e seja assumida a responsabilidade a que se propuseram não é preciso o elogio tão descarado aos seus cronistas, como ontem (1 de Junho) o Luís fez no seu artigo. Já sabemos que ‘muito prometem’, ou que têm um ‘humor genial’. O que é preciso é que assumam o projecto de uma imprensa alicerçada num forte compromisso com a liberdade. Está isso garantido entre vós? Se não estiver, mesmo que seja com colaboradores menos ‘geniais’, mas profundamente empenhados na liberdade de pensamento, esta nova ‘A Capital’ já valerá a pena.
Fraternalmente,
Frederico Mira George
Caro Luís Osório,
Todos recebemos com alegria a notícia da renovação da velha ‘A Capital’.
À sua volta – Luís Osório – gerou-se uma estranha (estranha para Portugal) consensualidade sobre a qualidade do seu trabalho como jornalista (e agora noutras àreas...não é verdade?) e, em consequência disso, uma alegria generalizada pelo facto de o projecto ter ficado ‘em boas mãos’.
‘A Capital’ é o jornal sobrevivente de um trio de vespertinos de eleição (juntamente com o ‘Diário de Lisboa’ e o ‘Diário Popular’). ‘A Capital’ é o que resta, pelo menos como símbolo, de uma velha e prestigiada escola de jornalismo, feita de coragem de opinião, de reflexões profundas, de seriedade editorial – de princípio editorial. Os últimos anos d’A Capital’ não foram famosos. Pior, foram terríveis para o jornal, para a sua memória, para a honra dos seus fundadores e, muito especialmente, para os seus leitores. É por isso compreensível que no caso do DL, Ruella Ramos, tivesse decidido fechar o ‘Lisboa’, não fosse a ele acontecer a mesma coisa que ao seu colega ‘A Capital’.
A vossa responsabilidade é muito grande e ainda bem. Ou conseguem criar com este novo projecto um espaço de respiração e diferença – menos que isso não vale a pena – ou ao jornal será decretada morte definitiva.
Ao ler esta ‘nova’ Capital, para além de manter a bola vermelha no título, há uma evidente preocupação em honrar a memória do que de melhor o jornal tinha, de forma a apagar a hecatombe dos últimos anos. Ao mesmo tempo fazem uma mistura com o ‘ar’ do DL, na forma de organizar as colunas, de apresentar os colaboradores, etc., mas procurando criar o desenho do que poderá vir a ser a marca deste novo tempo do jornal.
Este projecto conta com algumas facilidades evidentes para o seu arranque. Tem uma equipa pequena, gente que se conhece, empenhada num esforço de solidariedade e entre-ajuda, sem pressão de grandes tiragens (à partida). Que bom que assim é.
Para que o trabalho continue e seja assumida a responsabilidade a que se propuseram não é preciso o elogio tão descarado aos seus cronistas, como ontem (1 de Junho) o Luís fez no seu artigo. Já sabemos que ‘muito prometem’, ou que têm um ‘humor genial’. O que é preciso é que assumam o projecto de uma imprensa alicerçada num forte compromisso com a liberdade. Está isso garantido entre vós? Se não estiver, mesmo que seja com colaboradores menos ‘geniais’, mas profundamente empenhados na liberdade de pensamento, esta nova ‘A Capital’ já valerá a pena.
Fraternalmente,
Frederico Mira George
a empresa # 17
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
deixei-me vitimar pelo sono, pelo segredo
pelo aparecer da minha própria sombra
ouvi o coro dos crânios envaidecidos de serem
crânios elegantes
e deixei-me encantar pelos vocábulos que então (h)orei
absorvi-me, eliminei-me – muito dignamente
tornei-me um caule sem centro, sem osso
e como um verdadeiro profissional
aprendi a fazer cigarros à mão
as hemorragias passaram, perdi
a protecção que me fazia derramar o sangue
para fora dos vasos que o deviam conter
as veias impedem-me de passar
e hoje que é lua cheia de junho
e há morangos e torrões de açúcar
– como aqueles que se dão aos cavalos e aos franceses –
numa taça na mesa da cozinha
já parado
de ferro ligado a aço
sou o que me chamaram
sericina – o princípio constitutivo da seda natural
do latim sericu
deixei-me vitimar pelo sono, pelo segredo
pelo aparecer da minha própria sombra
ouvi o coro dos crânios envaidecidos de serem
crânios elegantes
e deixei-me encantar pelos vocábulos que então (h)orei
absorvi-me, eliminei-me – muito dignamente
tornei-me um caule sem centro, sem osso
e como um verdadeiro profissional
aprendi a fazer cigarros à mão
as hemorragias passaram, perdi
a protecção que me fazia derramar o sangue
para fora dos vasos que o deviam conter
as veias impedem-me de passar
e hoje que é lua cheia de junho
e há morangos e torrões de açúcar
– como aqueles que se dão aos cavalos e aos franceses –
numa taça na mesa da cozinha
já parado
de ferro ligado a aço
sou o que me chamaram
sericina – o princípio constitutivo da seda natural
do latim sericu
terça-feira, junho 01, 2004
VIVA a ÉPUBLICA!
ABRIL É EVOLUÇÃO: E Outubro será, ao que tudo indica, implantação da Epública.
RAP em GATO FEDORENTO
RAP em GATO FEDORENTO