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sexta-feira, junho 02, 2006

nos dez anos da morte de mário viegas 

nos dez anos da morte de mário viegas



um dia vi-te e
dei por mim
a deixar de ter o cérebro dormente

o luar
essa coisa que não pensa
mas é
saía-te pelos dentes
e pelos dedos
e pelos gritos..........,pelo
odor
a álcool
eu
..........que não sou homem
..........nem mulher
..........nem nada de intermédio que o sol possa contemplar com dignidade
amei-te como uma bolha de ar a descobrir-se
a erguer-se no ar que nesse dia
respirámos
lacrimosamente
num teatro onde tu foste morte e deus
e madeira e tecto e vassoura
e o mistério de todas as coisas
que fazem das casas teatros e dos teatros casas

contigo as coisas não tinham significação
tu eras uma borboleta de asas paradas na cor
uma voz que se expandia na pele
e arrancava a perfeição que na vida torna
tudo
imperfeito –
o sol tem um leve cheiro animal
mas tu eras além do sol
e da matéria animal
e do teatro
e dos homens
e das borboletas

senti entrar em mim o sangue e a saliva
que desprendias
celebrando que nada
de ordenado há
na natureza – pela tua boca
finalmente
deixei de estar em mim

nos teatros onde excomungavas os restos
de gente que atavas e desatavas como
um menino ata e desata as cordas de um baloiço
a uma árvore
eu
..........que não sou homem
..........nem mulher
..........nem nada de intermédio que o sol possa contemplar com dignidade
amei-te até se acabar o milagre
até me sentir humano dos pés à cabeça
como um garfo se sente garfo dos pés à cabeça
como uma faca se sente faca quando se espeta
no coração de um menino que ata e desata
cordas
numa árvore na esperança brutal
de existir num baloiço a baloiçar

morreste e isso basta-me
não preciso de te invocar
não estás presente.........,desconheço a ausência
das coisas
de cada vez que fumo um cigarro lembro-me dos
teus dedos a fumar um cigarro
– é verdade
guardo memórias
..........dos teus cigarros
..........do fumo
..........e do pó do último camarim

e depois de morreres instalou-se um silêncio
doce e tudo o que sei de ti é de ouvir contar

eu
..........que não sou homem
..........nem mulher
..........nem nada de intermédio que o sol possa contemplar com dignidade
vou agora dormir imaginando-te ícaro
a sonhar num dia de chuva
um ícaro a aproximar-se com asas de cera
de um cigarro de prata

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