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sábado, janeiro 21, 2006

tratado secreto da cidade # 25 

# 25 – quinta noite – 21 de dezembro – lisboa
com base no espectáculo «a dificuldade de se exprimir» de copi, tradução de luís castro, pela companhia de teatro karnart, dezembro e janeiro de 2006, lisboa

4h35

sigo os trilhos do trenó.
hoje inicia-se o ciclo minguante da lua.
ainda bem que não nevou nestas últimas horas, se tivesse nevado seria agora impossível reconhecer estes sulcos negros.
dizem que os lobos das estepes são os mais perigosos. apesar do punhal que trago ser-me-ia impossível defender-me de uma matilha ou mesmo de um solitário. é engraçado, aqui nunca se diz «um lobo solitário», referem-se aos lobos eremitas como se fossem um diamante num colar...
ao mesmo tempo, se não nevar, não conseguirei alcançar o trenó antes dele chegar à cidade. é preciso que a neve o detenha, é preciso que os cães se afundem até ao pescoço e lhes seja impossível aguentar a caminhada. é preciso que elas se vejam obrigadas a descer do trenó para limpar a neve da estrada. isto se tiverem levado a pá. e é preciso que os cães aguentem o frio. estão quarenta graus abaixo de zero. quarenta graus. será que se lembraram de levar aguardente para os cães?
nem sei como ainda não caí neste mar branco. talvez sejam os cascos que servem de protecção... mas se neva deixo de distinguir os sulcos do trenó. é uma tarefa impossível. demasiado impossível. tenho as asas coladas. e mesmo que as tivesse soltas, sem a luz de uma lua plena como conseguiria eu orientar-me? o melhor é manter as quatro patas no chão. galopar de vez em quando. mesmo que não possa salvar irina, talvez possa salvar um ou outro cão aquecendo-o com o meu corpo. na cidade deve estar mais quente. nem que seja um bocadinho mais quente.
irina morrerá, eu sei que sim.
deitou demasiado sangue antes de partir. talvez a madre se salve. há tantos anos que ela não habita o seu corpo físico. quanto à senhora garbo... já está morta não é verdade? ela mexe-se e todas essas coisas que fazem dos corpos coisas aparentemente vivas, mas viva?
agora irina, tanto sangue... a perna deslocada, os gritos sufocados, o dedo partido... irina não se salvará se eu não a aquecer.
sou um velho piano, a trote, de vez em quando a galope, só, em plenas estepes siberianas... (tanto sangue.) dizem que os lobos... pois, já disse.
quando vivia em moscovo tinha mãos e pernas. tinha pele...
de que serve pensar agora em moscovo. se ao menos me conseguisse recordar do calor daqueles dias em casablanca. não houve dor no meu corpo que não fosse sarada pelo sol de casablanca. nem mesmo quando me abriram e mudaram a cor dos olhos me fizeram mal. ninguém percebe,
mas naqueles dias eu sabia,
eu acreditava,
que me iriam tirar daquele avesso em que tinha nascido para habitar num veludo novo de existência. e em casablanca eu via irina a apanhar sol no terraço. deslumbrava-me com aquele corpo de rapaz por construir. e havia a voz de pierre, que nunca vi...
não me quero lembrar de mais nada. quero salvar irina daquele trenó e sei que é impossível. sou um velho piano gasto. nas estepes. quarenta graus abaixo de zero.
há muitos anos, há milhares de anos, neste preciso lugar, nasciam lírios selvagens, o campo era cultivado, os homens amavam-se com força. com delicadeza. com uma imensa força delicada.
obrigado pátria mãe por teres trazido para este lugar o conforto das tempestades de neve. sou um velho xamã siberiano. um ponto escuro na natureza. desesperado xamã das estepes a gritar por ti
irina. meu menino.
nem o nosso filho conseguiu sobreviver aqui. quando chegares à cidade, morta e repousada lembra-te da tua velha lira e do fogo daqueles dias em casablanca. lembra-te do teu solitário diamante.




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