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segunda-feira, janeiro 23, 2006

tratado secreto da cidade # 26 

# 26 – noite sexta – 22 de dezembro – évora

5h10

costumávamos encontrar-nos junto de um lago de águas negras. dava-mos as mãos e os lábios. dava-mos os pés debaixo de água. transbordávamos de encanto sob uma lua inventada. junto ao lago juntavam-se cães e veados. seres róseos que vinham só para nos ver abraçados. tínhamos roupas brancas e violetas. brancas eu, violetas tu e os bolsos cheios de pedras numa esperança que se revelou sempre vã de nos afundarmos para a vida nesses sonhos. se olhássemos o céu não era difícil ver a miríade de anjos às cores que assistiam passivos ao nosso abraço. fomos irmãos e irmãos deixámos de ser. não sei se esse lago ainda existe. eu existo, tu existes, os cães existem, os veados. mas o lago terá secado? porque têm os lagos uma aura tão misteriosa? o que tornava essas noites diferentes de todas as outras noites e de todos os dias era conseguirmos estar vazios de tudo. ali. sem um pensamento, sem uma corrente de memória que nos arrebatasse do coração o calor daquela água fria e daquele lugar sem geografia onde descobrimos, por acaso, num oráculo encontrado, insígnias gravadas nos ossos cranianos de uma vaca morta, termos já habitado aquele lugar há muitas vidas quando éramos crianças. esta noite distante de todos os lugares do mundo é-me impossível chegar a esse lugar. não fomos nós que nos deixámos submergir para a eternidade nas águas desse lago, foram as águas desse lago que submergiram todos os pontos cardeais que permitiam lá chegar sem qualquer esforço, sem qualquer indução onírica. já nem sei o teu nome. o meu sei porque carrego esse peso como um tesouro amaldiçoado. tenho à minha frente o crânio da vaca que nos revelou termos passado as primeiras vidas da nossa idade naquele aquário de brumas felizes e ventos bruscos. mas já não há nele um só vestígio de qualquer marca. ambos fomos testemunhas de qualquer coisa extraordinária que agora se perdeu. finalmente libertos estamos aptos a um afogamento sem encantos. a que mais podemos aspirar? se esse lago existe, à sua beira estarão outros corpos, outros lábios, outros pés. ou não. olho sereno para o sangue que se espalha na banheira, sangue que não é meu, sangue onde me banho, sangue que consagro e tomo pelos poros como um bálsamo purificador dessa ilusão de morte florescendo face ao olhar compassivo dos animais. daqui a pouco será hora de dar corda à máquina que conta as horas e reconhecer no relógio mais um nascimento do sol. antes disso lavarei cuidadosamente a banheira, meu novo e efémero lago. a observar-me só um animal que por prudência e bom gosto não revelarei o nome mas que ambos conhecemos.

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