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sábado, janeiro 28, 2006

tratado secreto da cidade # 28 

# 28 – noite oitava – dezembro – évora

4h57

sentado num tronco, gelado, via-te nadar. contentava-me com essa distância. poderosas braçadas remando num torvelinho de correntes e rochas. não paravas. quando se fica assim, como eu ficava, gelado, sentado num tronco, vendo alguém combater ondas, sem palavras, sem olhares recíprocos, ganha-se uma resistência física que dura para toda a vida. o contacto visual é tudo o que necessitamos para desenvolver uma razão de existência. eu podia ter ido ver os barcos e as suas regatas uns metros mais ao lado. podia ter ido ver aviões a descolar, pessoas à entrada do metropolitano… podia ter feito o que quisesse da minha vida, ter ido ver, no conforto de qualquer lugar, com o corpo quente, todas as coisas grandiosas da criação. podia ter amado um amor seguro. podia ter sido amado por um amor seguro. podia. mas o que fiz e fiz bem em tê-lo feito, foi sentar-me todas as tardes num tronco junto a um mar frenético a ver-te nadar. acham os físicos das teorias quânticas, que o simples facto de observarmos uma partícula a modificamos estruturalmente. irreversivelmente. se eles têm razão devo ter-te mudado bastante a vida porque não houve braçada que desses que a minha retina não observasse. a minha atenção era total. concentrada. com-centrada. alinhada. mas a minha mente esteve sempre vazia enquanto te via nadar. nunca o meu cérebro produziu uma única intenção durante aquele tempo triangular: eu, tu e o oceano. mas se os físicos têm razão basta observar para mudar tudo. não é necessária qualquer motivação. hoje penso que apesar da distância a que sempre estivemos e do facto de teoricamente tu não saberes da minha presença, de alguma maneira, também tu me deves ter observado em permanência. talvez os físicos expliquem estas coisas. não sei muito disto. será que ao se ser observado se observa através de algum processo oculto ao nosso entendimento racional? ser observado também é observar? alguma coisa deste tipo deve acontecer pois também a minha vida se alterou tão radicalmente que também tu me deves ter observado enquanto aparentemente só nadavas. dantes era homem agora sou uma inerte matéria indefinida. este processo levou vinte e quatro anos. até que um dia não apareceste, ou eu perdi o dom que permitia distinguir-te na água… enfim, deixou de haver contacto. visual. como sempre usaste touca não sei a cor dos teus cabelos nem imagino a forma do teu rosto. durante esses vinte e quatro anos não foste mais que um ponto a deslocar-se no meu campo de visão. o mais importante ponto em deslocação no meu campo de visão.

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