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sexta-feira, janeiro 06, 2006

tratado secreto da cidade # 15 

# 16 – décimo segundo dia – 12 de dezembro – lisboa

5h35

sonho. uma estrada azul. igual às estradas negras de alcatrão. uma estrada. igual. mas azul. traços contínuos e descontínuos iguais aos das estradas de asfalto. traços brancos sobre um chão de lápis-lazúli. pequenas pedras. não polidas. um chão de pequenas pedras não polidas lápis-lazúli. eu sentado, numa cadeira de praia. observo. na berma alguém de sotaina carmim empurra. um carrinho de bebé. as suas passadas indicam uma marcha. avança só com uma perna. a esquerda. avança com a perna e estaca o passo, a seguir, a direita acompanha o movimento até que o pé pára imóvel junto do outro. uma marcha. avança sempre com o pé esquerdo. imobiliza-se com o direito. pés juntos. avança novamente. sem pressa. a sotaina parece uma bandeira carmim presa ao fio que é seu o corpo. nem o carrinho nem o bebé emitem qualquer som. param e arrancam ao ritmo da marcha. quando passa à minha frente dá-me a cara a ver. sem expressão ou cumprimento. é dourada. as mãos não sei porque estão tapadas por umas luvas de algodão branco. face ao horizonte prossegue. passam três carros: um vermelho, um branco, e um preto. todos sem condutor mas com alguém sentado no lugar do morto vestindo sotainas roxas. ao fim de um tempo, talvez uma hora, ou mais, no tempo-real-dos-sonhos, o ser encontra uma flor no chão. pára. trava o carro e o bebé. diz-lhe umas palavras ao ouvido. e fica. perfilado. paralelo ao sol. de frente para a estrada. dez minutos. uma ambulância que os recolhe. partem. presa na porta fica um pequeno pedaço da sotaina carmim que ondula freneticamente com a deslocação de ar. a flor desaparece. sob a minha cadeira um rectângulo de chão começa a descer. como um elevador de palco. eu deixo-me ir. terra adentro. sentado e sereno. já no fundo da terra vejo o rectângulo fechar-se sobre a cabeça. ali fico, gozando o odor fresco de uma terra acabada de lavrar. por dentro.

6h00

vigília. acendo uma vela junto ao miradouro do largo da graça. o sacristão abre as grandes portas de madeira da igreja. lisboa parada aos meus pés. o rio congelado. gravado num banco de pedra estão uns versos que transcrevo:
«Quantas vezes, de súbito, emudeces!
Não sei que luz em teu olhar flutua.
Sinto tremer-te a mão e empalideces.

O vento e o mar murmuram orações
E a poesia das coisas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.»
sobre os meus joelhos. sobre a sotaina roxa, meu vestido, escrevo ainda quase sem tinta: antero do quental.



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