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terça-feira, novembro 30, 2004

o princípio # 26 

afastaram-se os sonhos paralisou em mim a demência
vital
vibrante e assustadora do poema/prumo
ruíram as texturas da noite e
a sensibilidade do cume dos dedos

se calhar fechei a janela cedo demais
talvez não devesse ter jantado

sinto pés a progredir sobre a minha cabeça
se não fossem os cigarros e as suas pontas flamejantes
ornadas pelo som de tambores –
jóias sul-americanas
tambores-jóias - tremendas cabeças sonoras
consumindo-se na turbulência do fio de fumo
teria perdido todas as cópias da minha
memória
talvez isso ainda venha a acontecer esta manhã

uma vez um barco serviu-me de nível entre colunas
estava junto ao tejo
e caía ardendo sobre a barrenta claridade
dos astros e podia nadar
e reacender os cigarros n’água
e ver até o sol em segredo
que a noite é isso
a visão de um sol cego

tudo isso acabou esta noite
os sonhos e o poema transformaram-se em pedra em
escarpas suspensas sem floração possível
espécie de figueira suicidária
tenho os sonhos selados algures
e estou mortalmente exposto
ao olho do sol revelado
à tremenda luz da aurora

segunda-feira, novembro 29, 2004

o princípio # 25 

inox


deitou-se sentada
concentrou-se na pouca roupa que sentia
como um resto de si
uma imaginária armadura cobrindo-lhe apenas o tronco
sentiu um frio absoluto contínuo persistente
agudo
entrar-lhe pela planta dos pés
instintivamente contraiu os dedos como
pequenas garras de ouro
num anel de brilhantes
contraiu os dedos até se ferir ao de leve nos estribos
pensou que no fim daquele combate
o último o último o último
quereria o seu sangue de volta

a estucada foi gentil – meia hora
uma
duas horas a tarde inteira
nunca se sabe quanto –
o tempo
as batalhas...

não pediu o seu sangue de volta
mas sentiu o calor regressar
aos ínfimos vasos sanguíneos da planta
dos pés
.......autorizada
.......tinha-os tirado vagarosamente
.......dos estribos

«devia ter trazido as calças pretas
ou os sapatos forrados
não
as botas altas e umas meias mais quentes»


não pensou

houve um lapso de tempo no seu exíguo
coração estacado
amanheceu
.......basta dizer depois –
.......depois são horas –
.......as horas –
totalmente deitada/fechada/oval
com os olhos dormentes
ou talvez fossem as pestanas coladas
numa cama oblíqua feita de lavado

não pensou

já lavada e longe
esterilizadamente longe
uma pequena bacia de inox

domingo, novembro 28, 2004

o hora do comboio 

ah o comboio
ah a hora
à hora
há o comboio
há a hora do comboio
há a hora
há o comboio à hora
a hora do comboio

é
éh

o comboio ora
os suicidas suicidam-se porque pensam ter o controle exacto da hora da morte como uma folha de papel com os horários das partidas dos comboios o suicida não está às portas da morte caminha até à porta da morte pelo seu pé ao ritmo da sua própria escolha o que assusta na morte é a condenação a incógnita da hora o suicida não está a morrer o suicida suicida-se antes de morrer a morte só advém para o suicida depois do suicídio que é obra escolha e aparente vontade do suicida entre o suicida e a morte há a hora escolhida do suicídio – o comboio
esse é o fascínio
esse é o terror


o princípio # 24 



esta casa
o cão lá fora
ouço nitidamente os seus dentes
arrepelando as cordas de uma lira
(ou será uma harpa?)

noutros tempos
cri
que vacas fardadas me viriam buscar
prender
levar
queimar –
coisas que o devaneio faz brotar
e era para aqui
para neste sótão que sonhava vir encovar-me
enquanto as ouvisse ruminar a casa
como ouço agora o cão a babar-se na tijoleira

sou desertor
de coisas que não sei nomear
e sinto o medo devorador de não ter medo
de até querer ser devorado

um dia
algo
ou alguém
virá buscar-me
mas que lhes interessará este meio-corpo desarticulado?
vão levar uma úlcera humana numa caixinha?

o cão ganiu
a lira foi comida
as cordas da lira descem rapidamente
pelos seus
intestinos delicadamente bailarinos
recortando harmonias – quase – inaudíveis

este cão
começou por ser violoncelista
mas depois vieram as festas de aniversário
as comidas requintadas
os presentes
instrumentos mais fáceis de exercitar
e ele foi desistindo
pouco a pouco do arco do porco
das costelas de carneiro
e da mulher que abraçava entre as pernas da boca

um dia a cabeça do cão cairá solta do pescoço
as pernas desprender-se-ão dos tendões
e quando outras vacas com outras fardas
vierem
.......e um dia virão
.......eu sei que virão
caberemos os dois na caixinha
e nela
o arco
o violoncelo
a lira
(mesmo a harpa)
a cabeça as pernas e os tendões do cão
e eu

tudo vai correr bem
tudo vai correr bem
tudo vai correr bem
tudo vai correr bem

sábado, novembro 27, 2004

Mestre FERNANDO VALLE  



"NÃO HÁ MORTE NEM PRINCÍPIO"
Mário Dionísio

quinta-feira, novembro 25, 2004

o princípio # 23 

os ossos
o crânio
duplicam-se contraindo o cérebro até
que o sangue deixe de fluir

a dor é total/parcelar/una/divisível

os ossos adensam os órgãos
os órgãos entortam-se em pequeníssimos arroubos
como uma purificação gangeana
onde o rio é plasma e a purificação é
lodo

os ossos abatem o que ainda resta
de flexível
no meu afeado interior –
podado por uma dor persistente
por uma dependência profunda do limite
entre o risco da capacidade ilimitada
e ilimitado risco da incapacidade escolhida
sou
os próprios ossos que me quebram

quando o sangue se vomita contra a pele
e a pele o impede
.......(a pele tem sido a criança protectora
........e o nervo de resistência à morte imediata
........das artérias em convulsão)
não havendo alívio há a consciência
da particular forma de espuma de que sou composto
é o inicio
o plural
a aliança com a própria dor
pela imposição das invisíveis mãos do nevoeiro

a dor
é
afinal
o espaço possível
aberto
entre o que resta da matéria corpórea com que nasci
e a deposição final das cinzas de que me constituo

manhãs de morte e cremação

quarta-feira, novembro 24, 2004

o princípio # 22 

há um entre nós um poema como uma mão queimada
uma construção sem projecto

o arquitecto é a suprema
máquina destruidora do poema
e a arquitectura só existe no poema porque no poema
ressoa a ausência do arquitecto

há ente nós um poema que move os membros flácidos
da pele num
incêndio de devoção
sinos
candeeiros
um poema púrpura onde as pedras
não se alinham
como os abjectos arquitectos querem que as
pedras
se alinhem

esse poema
......entre nós
ergue-se como um retábulo uma fábula uma au
sência de prazer

é nosso este cravo este degrau de tochas e venenos
como álcool em evaporação
o poema é a antítese da catedral
o poema evapora-se como se evapora o álcool em evaporação
a catedral é um edifício e os edifícios n
ão têm arquitectura têm arquitecto
o arquitecto é passado as rosas e as roseiras
não são edifícios por isso contêm a máxima
arquitectura do poema e o rosto eterno da vida breve
do álcool em evaporação

há entre nós uma rosa ou uma romã
uma estrutura floral sem esquadro
uma dor movente a
cortina dependurada de um louco
como uma campânula u
m estertor musical
a pausa e o ruído das sementes vermelhas da rosa
das romãs-rosa
a gravidez fremente das romãs

quero morrer enquanto ecoar a transparência
dessa leitura sem sorrisos
sem mãe
........as mães são arquitectos em acção destruidora
…morrer
sem o calor da pele tocada em noites de violência
penetrada

por detrás do poema a insuportável memória do amor
intocado puro inviolável
a irrealizável memória de um amor liberto de cruzes
da face cruzada dos arquitectos

entre nós e os arquitectos
a arquitectura
a gramática do poema

terça-feira, novembro 23, 2004

jorge silva melo notas soltas sobre...fotos 


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Abril em Maio - Novembro de 2004
Ciclo "E SE FÔSSEMOS MESMO PASSADORES"


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segunda-feira, novembro 22, 2004

o princípio # 21 

durante o sono abriram-se girassóis
no meu estômago
levei quatro ou cinco horas até conseguir expelir
o inchaço ulceróide n
uma torrente de caules perfuradores
toda a cama ficou envolta naquela líquida seiva
de pétalas

não cheguei a acordar
não consegui acordar
não vi a aparição e
o
s
girassóis
morreram logo após a golfada
o parto
a dor

não me lembro de nada nem
sei
porque conto isto se das pétalas
nem sinto uma pequena cor

todos os dias são iguais
todas as flores morrem
nada há a registar


domingo, novembro 21, 2004

o princípio # 20 

I

no sepulcro de vaslav nijinsky
ao redor da oval lápide de granito
estende-se como uma boca de orvalho
uma roseira de rosas apagadas

o cemitério fecha-se na mudez
de um muro

como se estrangulassem ramos ciprestes
erectos
rutilantes
amarram folhas secas ou
cabeças de mulher –
secos e inviolados nós

sob a chapa de granito os mínimos ossos espinhosos
de vaslav
retorcem-se em fúria
envoltos na brancura
do seu último figurino
talvez ainda beije a pele quente de diaghilev
talvez recorde a sua expulsão da vida

eu vejo
os mínimos ossos de vaslav contorcerem-se
na plena sagração deste verão
sem a beleza das suas longas e esguias pernas
sem os beijos das prostitutas francesas
sem deus



II

deito-me sobre a secura da tua sepultura e abraço-te
beijo-te sinto renascer o sangue da grande dor da loucura
juvenil na tua pele apodrecida
amo-te
entrarei contigo no inferno das flores carnívoras
a que vais regressar
juntos assassinaremos ramola
tessa
kyra
todas essas mulheres que passaram por tuas amantes
por tuas filhas
assassinaremos os teus biógrafos
juntos procuraremos o que resta dos olhos de diaghilev

hoje dormirei na memória – n
os sonhos permitidos

vou levar-te de regresso às montanhas da russia
para que possas anunciar sem medo
o ser odioso que sempre foste
amantíssimo rosto
doce rosa
vulva contraindo-se em espasmos de afecto

vaslav nijinsky
eu o juro
na neve da tua grande russia
poderás voltar a viver livre
como um cão estrangulado

sublime animal dançante
ergue-te do húmido subterrâneo
dos que ainda vivem

sábado, novembro 20, 2004

jorge silva melo- algumas notas soltas sobre 

já foi há alguns
bons
anos
em évora
o jorge silva melo estava lá a criar um espectáculo
com um grupo de jovens actores
o paulo claro
a alexandra espiridião –
......[com quem vim mais tarde a co-dirigir
......também com o joão sérgio palma, o pim-teatro]
o patraquim ?
não tenho a certeza do patraquim
não interessa

numa manhã – seria inverno?
o jorge estava sentado
numa mesa do café arcada
numas mesas atrás
eu
ele sozinho
eu
também
ele a ler o jornal – juraria que "o público"
à sua frente tinha um montinho de livros
e muitas folhas de papel a4 enfiadas
em plásticas e coloridas pastas

e lia
e escrevia
e ia acendendo cigarros

reparei que nunca largava o isqueiro
um vulgar isqueiro bic que agarrava como
se temesse a perda de um valioso objecto

terá sido isto em 92? 93?
não me consigo lembrar

talvez uma hora depois
os actores – os ainda quase actores
participantes nesse tal espectáculo
foram chegando
aproximando-se da mesa
ensonados
balbuciando arrastados bons-dias
o jorge respondia-lhes
com um aceno da mão esquerda

em menos de quinze minutos
à volta daquela mesa
juntaram-se umas quantas
gentes à procura de uma personagem
de um autor do teatro de... só à procura
a única coisa que se ouvia no meio da conversa
e de vez em quando
eram as sonoras gargalhadas do jorge silva melo

aqui há dias
dez?
onze? anos depois
ele esteve na abril em maio
numa sessão sobre livros leituras e seus passadores

sessão de um ciclo em que gostei muito
de participar

lembro-me agora disto
– da cena no café arcada –
das voltas que a vida já deu
das pessoas que ali se sentaram
das gargalhadas
dos livros
das folhas a4 nas pastas coloridas
nos sonhos daqueles jovens-ainda-quase-actores
e das suas procuras
e das dele
do jorge de então
e dele agora

durante essa sessão na abril em maio
fotografei-o muitas vezes
tinha-o avisado durante o jantar de que o ia
fazer
e como ele não mostrou importar-se abusei
concentrei cada fotograma no seu rosto
e o resultado disso impressionou-me
inesperadamente
fez-me pensar sobre ele sobre as suas opções
sobre estes anos que passaram
e
acima de tudo em muitas picardias
mesmo antipatias que tinha desenhado em mim
sobre ele sobre as suas atitudes
sobre as suas acções e iniciativas e projectos

naquela sessão
naquela noite
fiquei a gostar do jorge silva melo

talvez ele não tenha dito nada que já não
tivesse dito
talvez não tivesse sido uma sessão de novidades
e até houve por parte da assistência umas
intervenções patetas que nitidamente
aborreceram o fluir daquele encontro
é o costume
há sempre umas pessoas que aproveitam
estas ocasiões para tentarem pôr em evidência
as suas frustrações
as suas faltas de vida
as suas vidas em falta

até talvez aquela intempestiva intervenção
de um cineasta ressabiado me tenha
interessado pela expressão que o rosto
do jorge me causou naquela noite

só tomei consciência disto depois de ver
as fotografias que tinha feito
não se fique a pensar que as imagens têm alguma coisa de especial
não têm
quer dizer
para os outros não têm
são só mais umas fotografias do jorge silva melo

para mim não
transportam mais que simples imagens
de um corpo
do corpo do actor
ou do encenador
ou do autor
essas coisas

na solidão daquela presença
revelou-se um brilho
como só brilha a presença da solidão
e nas suas palavras a evidência da necessidade
desesperada de encontrar o que em cada momento
é absolutamente essencial
para que o sangue flua nas veias
e daí possa nascer a centelha
daquilo a que podemos
eventualmente
chamar verdade

durante aquelas duas horas
não foi o rasto da personalidade do homem
que esteve presente
não foram as histórias que se contam disto
e daquilo
não foi o que devia ou não devia ser
em atitudes que se tomaram

o que esteve ali
mesmo à minha frente
foi um olhar claro sobre a vida e o tempo que resta
e
também um olhar de dúvida sobre o que na vida
pode ser escolhido e o que ao tempo pode ser exigido

esse olhar
só pode ter
quem da pele tem a consciência da sua fragilidade
e só esses têm a força de o
transmitir
e foi isso que aconteceu
fora do mercado*
fora da auto-estrada
da linha recta
do caminho programado

mais uma vez de entre os seus dedos
não saiu por um segundo um pequeno isqueiro bic

há objectos preciosos que não podemos perder
há pessoas que é preciso ver para além do que é visível

* título da crónica que JSM assina no jornal "o público"



sexta-feira, novembro 19, 2004

Nijinsky 






«Sou um louco que ama a humanidade
A minha locura é amar a humanidade.»
Vaslav Nijinsky

quinta-feira, novembro 18, 2004

o princípio # 19 

sim –
saber construir janelas neste gavetão de plástico
neste leite sepulto
sonâmbulo
a que estou obrigado
aprender vertigens junto a penhascos velozes
não voltar a ter sonhos saber
cantar com o translúcido canto das crianças
femininas
sim –
gostaria

este espaço profuso de cardos-d’agua
ausente de ti
ensombra-me mortalmente.........sim –
compor todas essas coisas simples
que só a bondade tece
livrar-me da pelúcia gorda da gola do meu casaco de forças
sim –
ter o poder de estar junto de ti
e ter espaço e coração para que me ensinasses
a tricotar desenhos de peixes-voadores
........como os que afloravam de vida no convés africano
........desse navio niassa
– carrasco já afundado
........transportador de soldados sem chumbo
........para a guerra sem inimigos

não sei porque insistes tanto nas perguntas

sim –
é verdade
sim –
queria não reaprender
não ter nada entre os dedos

guardo a secreta esperança de uma deformação
inesperada
das mãos

que elas se deformem até à extinção das
palavras curvas com que te escrevo

se só tivesse mão esquerda
ou se brutalmente se invertessem os extremos
fazendo tocar a ponta dos dedos nos pulsos
e os pulsos na ponta dos dedos num osso continuo
talvez voltasse a saber-me recomeçar

há quem procure o conforto de um corpo são
eu
aspiro a uma invalidez objectiva
qualquer coisa furiosamente concreta
que pudesse mostrar com dignidade aos que amo
inaugurando outras formas de silabar
pela deformação
o amor

não sou capaz de extrair da pele um único movimento
e é tão desesperadamente extenuante morrer

já não desejo ser peixe
nem pássaro
nem homem
nem mulher
nem réptil
nem criança-pássaro
nem criança-homem
nem criança-mullher
nem criança-réptil

quero
a liberdade de um condicionamento definitivo
uma invalidez projectada
angélica e primordial

sou inextinguível como uma chama em pânico
e grito e peço e espero
a dádiva compassiva de todo o choro terrestre
no tempo rectangular da minha eternidade condenada

terça-feira, novembro 16, 2004

o princípio # 18 

é espantoso
só hoje
.......depois de tantos anos sentado à vossa dupla cabeceira
reparei que tendo vós olhos
e a aparência
do correcto funcionamento de todo o aparelho ocular
dessas vossas quatro bolas
enfiadas a martelo nos ossos do crânio
não sai um pequeno ínfimo atómico vislumbre

já é noite e penso-vos e vejo-vos
dois jogadores de xadrez
do antigo império soviético
aquecidos pelo peso de oxidadas condecorações lenine
frente a frente
na irreversibilidade de qualquer espécie de erecção cervical
cada um com o seu cronómetro
sem que um
ou o outro
tenha a vontade a coragem ou mesmo a disciplina
de mover um peão um simples peão em frente

seja como for
o conforto dos vossos sofás é inegável

segunda-feira, novembro 15, 2004

o princípio # 17 

na paragem do texto surge pálido um monge
como uma flor de granito ou um compasso
em pontas secas traçando espirais sem perfume

patético bailarino sem centro
densamente desmembrado pelo odor do sexo que dança
arqueado

bailarino rasgador do delicado hímen que o envolveu
botão de rosa derrotado
patético heterónimo de prumo
à porta da catedral

na paragem do ritmo o texto de uma rosa
e um estufim onde se encobre a rosa e o texto
na cardíaca morte do amor e
todos os laços se dissolvem como um anel roubado
ao anelar mar dos dedos

rosa estrovo que prendendo o anzol à linha
prende ao anzol da
amorosa
parte do compasso –
o aço
a ponta com que se rompe o traço
........essência de todos os perfumes passados

domingo, novembro 14, 2004

o princípio # 16 

foi a minha adolescência
lembro-me dos milhares de pequenos quadrados cerâmicos
espalhados pela sala do palácio
espreitados
recortados pela lente do olho
na passagem das fracções
de segundo entre cada fotograma

cada uma dessas quadrículas pintadas
aferventava em delírios fotográficos
guerra – mortos – vencidos caídos
cavaleiros sem bandeira balbuciando inaudíveis súplicas
os azuis traziam o odor ao sémen lusitano
e os amarelos fediam a dissimuladas camas de alcoice

chamam àqueles fragmentos de lucidez azulejos – infelizes
não são
são a própria morte revestindo paredes com um
piano ao fundo atracado a um carro de bois

em certas noites recitavam-se melodias próprias para públicos
organizados
famílias
e o pianista fardado de pianista
cravava os dedos nas teclas da coisa preta
rançoso instrumento de canto e percussão
sob os focinhos daqueles corpos envoltos em cascas de
astracã e sapatos italianos feitos em braga até baterem
palmas julgando aplaudir a música
o piano
ou o pianista –

na verdade
os embuchadores
o que aplaudiam (com prazer)
era a face retorcida daqueles dependurados féretros
trespassados sem a glória de um último beijo

naquelas noites burguesas de piano aos coices
cada uma daquelas derrotas se revivia
e cada espada reentrava nos dorsos do corcel árabe
......cada aplauso uma estucada

todos os mortos ficam para sempre desenhados a giz branco
no chão dos seus campos de batalha

ali estão eles sempre a morrer e sempre a serem aplaudidos
depois do piano
ou das audições de rendilhados poemas para senhoras
com croquetes nas bandejas

em cada um daqueles recortados quadrados cerâmicos
um soldado ainda perde a vida

e no fim da noite vinho do porto para substituir o bagaço
que tomariam secretamente no quarto –
aqueles bisontes com anéis

por cada cabeça decepada um cálice
sem deixar de rezar o pai-nosso
antes e depois de se masturbarem sentados no mogno
das casas de banho

antes e depois do táxi
antes e depois do bmw

só os assassinos
conhecem durante as suas prolongadas e insones existências
o alívio de rezar um pai-nosso
antes e depois

sábado, novembro 13, 2004

o princípio # 15 

eu podia reacender o espanto no meu peito
cansar-te
chegar ao altíssono irromper das tuas células
no meu sangue cruciforme
.......sangue de espelhos
e com uma ferocidade gritadora
engolir-me como os engolidores de espadas engolem espadas
depositando o que do meu corpo não é osso
na parte superior
e interior
da goela
.......junto à raiz da língua
esse lugar florestal a que chamam fauce – aí
poderia adormecer dourado
e devolver-me liquidamente
em golfadas de pequenos beijos artesanais

25 anos de carreira # 2 

pérolas de sabedoria no «público»:

«Não sou eu que escrevo os livros. É a minha mão, autónoma»
António Lobo Antunes


quinta-feira, novembro 11, 2004

25 anos de carreira 

não vejo nenhuma razão para não acreditarmos na sinceridade das pessoas:

"acho que já podia morrer."
antónio lobo antunes ao «público»

está dito!

agora é só arranjar voluntários... a tereza coelho?...

o princípio # 14 

pastelaria alfacinha – lisboa


esta pastelaria
com cheiro a bolos e pão lavado
é visitada por uma gorda pintada de preto - encarnação
de um diabo ainda não inventado ou de um anjo
habitador do reino das patas de elefante

toda ela se senta com o peso de um esmagador
trovão de arame preto
atado em rabo-de-cavalo como se fosse cabelo

a coisa tem um olhar de martelo e uma gruta bocal
........quando a abre
engole gigantes tartes de nata como se injectasse vacas

nua
estaria pendurada de cabeça para baixo num inferno de bosh
amarrada pelos seus pés de cisterna
e na garganta-algeroz
um funil
servindo de túnel para a prazente passagem de banha
.......de homem
até ao sufoco

costumo vê-la pelas seis e meia da manhã
às vezes às sete e pouco
e a visão de tal criatura medieval exerce sobre mim tal
borrão de susto que já cheguei a temer a sua sofreguidão
coleccionadora de hominídeos

quando era criança a minha mãe levou-me
a visitar as gaiolas das araras no jardim zoológico
da visita só pânico medo choro e súplicas de fuga
o barulho que essas canoras pestes produziam em uníssono
só se equiparou nestes trinta anos que entretanto se passaram
aos vocalizos da diaba

quando ela se abre em grito
sinto renascer aquele pânico de infantil
as mãos param-se-me os olhos turvam-se
a pastelaria
fica a cheirar a papagaio

já há dias que a torcionária não aparece

naquele espaço rectangular
templário
até se ouvem pequenas liras no pão com manteiga
sente-se amor como um espaço aberto entre o café e o leite
nos galões

nas suas ausências
sei que sou o paquiderme substituto

mas em silêncio
que a minha voz não tem – ainda
(julgo)
o poder mágico de encher gaiolas de araras em trovoada

terça-feira, novembro 09, 2004

o princípio # 13 

há noites que trazem na boca o sangue das gárgulas e
o ar se exalta como sal espancando dorsos
noctígenas cidades abertas num vapor salivar
espécie de placenta –
reminiscência de orvalho
nuvem térrea

há noites em que o brilho é tão intenso como ventosas
segurando cheiros
e a morte se perfila no esvaimento
das rosas

há noites em que caem astros e os porcos
não dormem nas chafurdas tomados
por uma prodigiosa febre azul
como se tivessem fome de ouro
ou previssem a entrada ritual
de uma faca em dias de fratricídio

há noites sem branco sem vozes sem gato
noites que se edificam rescendentes
armadas com espadas
noites organizadas nas camadas mais altas da atmosfera
preparando cruzadas

e

há noites como esta –
noites cobertor
invadidas por profetas cravando-nos estacas nas patas
noites como esta –
em que se prendem os pulmões e contraem as artérias
noites sem eco sem ácido
noites vácuo para gente confortável

segunda-feira, novembro 08, 2004

o princípio # 12 

hastezinha fina de aço agudo
agulha – tubo oco – ponteiro de relógio
sei-me sem espelho insecto-mamífero sem labro
.......sem crânio sem dor
sei-me sem ti
sem as tuas cabeças de aferro –
.......florescentes tranças de dentes-de-leão
e sinto os olhos enfiados como contas enfiadas
em ramos de acácia

oco tubo metálico
sei-me sem ti
cavado de vermelhos
.......destiladamente
.......ainda
à tua espera

domingo, novembro 07, 2004

o princípio # 11 

leitura furiosa – adorava saber
que tinham roubado um livro meu


«O próprio inferno, embora seja eterno, data da revolta de Lúcifer. Portanto, à luz desta remota analogia, posso pensar que estou aqui para sempre, mas não desde sempre.» – Samuel Beckett


1
pergunta-me com barbas
.......o meu fumo incomoda-o
respondo-lhe com barbas
.......não
.......e o meu incomoda-o
não –
.......não me incomoda nada
pois… realmente…
.......fumamos os dois
sou o leonel…
.......sou o…
já temos nome
temos propriedades – fumos nossos
temos barbas que cheiram a cigarro
.......é o que dizem

2
vamos lá conversar somos tantos
e temos nomes
óculos
......fumos nossos
cinzeiros à frente
cheiros a desodorizantes vários pés bocas dentes cabeças orelhas
somos tantos
......todos os que fomos

3
ele vai estar a gravar a conversa não vai
.......maçariku vais estar a gravar a conversa
...........é uma pergunta
o microfone está virado para a parede
nós estamos do lado de cá do microfone
e é deste lado que devemos estar
é deste lado que sempre estivemos
.......é uma pergunta
e deste lado que não grava – nós que aqui estamos – tantos – todos
somos alfabetos não temos anal na existência
e em amiens como é
.......há sempre uma frança nestas histórias
.......brasil do operário

4
la cathédrale d'amiens est inscrite au patrimoine mondiale de l'unesco. avec ses 145m de longueur, une hauteur de flèche de 112m et sous voute de 42m, un volume intérieur de 200000m3, c'est un des plus hauts et des plus vastes édifice jamais élevés. elle est la plus vaste église de france, avec une statuaire remarquable (beau dieu)… luís e em… como é

o primeiro encontro foi com a vida
eles roubam o texto do escritor
a vontade de sair –
lê um pouco do que escreveste
as formas do livro o tempo do livro
........fúria –
........é uma pergunta

os presos… não deixam sair da cadeia
........cá deixaram - cá é lisboa
lá são centenas
........cá
........d. quixote no metropolitano dos anjos

5
continua lá a conversa

ler na distribuição de comida
comer na distribuição de textos
textos distribuídos na comida ingerida
........textos furiosos comidos
........lidos com esparguete

6
cá-lá-cá-lá
no instante-actor
lêem-se os fumos que se escreveram

num globo próximo
há sempre uma frança
e nós cá
ao mesmo tempo e a gritar

7
desculpe lá o meu fumo
mas leonel não me incomoda
........já lhe tinha dito
pois…
....... fumamos os dois


abril em maio
6 de outubro de 2004 de uma era vulgar

sábado, novembro 06, 2004

o princípio # 6 fotos - margarida guia 


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fotografia de susana paiva

o princípio # 6 fotos - margarida guia 


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foto de susana paiva

o princípio # 6 fotos - margarida guia 


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foto de susana paiva

o princípio # 6 fotos - margarida guia 


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foto de susana paiva

sexta-feira, novembro 05, 2004

o princípio # 10 

nova esquerda


ontem ao ver-vos entrar
perfilados
..........soldados-impedidos
..........de um exército de obediências várias
trouxe-me uma paz confortável
duradoura e pacífica vi-vos e soube que
não nos pertencemos que nunca nos pertencemos
estamos distantes como distantes
se tornam os amantes que não chegaram a sê-lo

ver os vossos rostos sem cara
..........medrosos de não cumprir
as vossas mãos sem critério
a plangência das vossas tarefas de representação
sentir junto ao corpo a diplomacia dos vossos frios abraços
fez-me sentir incomensuravelmente bem

gostaria
.........quase muito
de por uns instantes
ter entre os dedos
os vossos cartões parlamentares
.........cartões onde alguém terá inscrito
.........com zelo e infinita dedicação
o estatuto das vossas funções imprescindíveis
e acrescentar pelo meu punho
.........carimbar algumas palavras a vermelho
sobre o vosso abreviado nome burocrata
..............«DESISTI DE SER»

quinta-feira, novembro 04, 2004

sete horas quinze minutos AM 


quarta-feira, novembro 03, 2004

o princípio # 9 

edital

aos operários especializados
na fabricação de êxtases

aos que dormindo experimentam
o apaixonamento das palavras da salvação –
.........seres belos
.........viventes sem rasto

..............................in
........................for
...................ma
............-se

nada mais há que tristeza
nada mais há que tristeza
nada mais há que tristeza
nada mais há que tristeza
nada mais há que tristeza
nada mais há que tristeza
nada mais há que tristeza

o princípio # 8 

2 de novembro de 2004
dia do assassinato do cineasta theo van gogh


estas são as palavras os muros e as imensas paisagens
da tua doçura caligráfica – som das bandeiras
esta é a luz das lanternas acusadoras – o princípio
............viajante do distúrbio
............nave dos voos circundantes
............terás de renascer de dentro de um nó
............– de uma queimadura
..........................................de um coração

a dança dos ciprestes dura no silêncio das suas culpas

terça-feira, novembro 02, 2004

o princípio # 7 

sem conseguir encarnar a existência maciça de um deus
nem a calma das virgens sagradas de constantinopla
às vezes sento-me no topo da catedral de hagia sophia
observando exíguas formigas em oração
......movem-se no amargo peso rastejante da fé
......trazem cruzes proibidas disfarçadas sob os véus

no pináculo da mesquita de hagia sophia –
......que não foi construída pedra sobre pedra
......nem semeada na terra
......mas caída dos céus –
ocupo-me de pequenas coisas importantes
ao som de cantares dervixes
......sons poderosos
......trepadores de paredes circulares
arrumo a carteira escrevo postais rasgos bilhetes de autocarro usados

antes de cair
......(amparado por dedos gigantes)
sobre mosaicos entontecidos por importantes sepulturas imaginárias
nunca me esqueço de recitar
o
meu
mantra
sagrado
palavras secretas que a própria catedral de me confiou
«anjos caídos de todo o mundo uni-vos»
e caio
e os mosaicos abrem-se em leito para me receber

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