sábado, novembro 20, 2004
jorge silva melo- algumas notas soltas sobre
já foi há alguns
bons
anos
em évora
o jorge silva melo estava lá a criar um espectáculo
com um grupo de jovens actores
o paulo claro
a alexandra espiridião –
......[com quem vim mais tarde a co-dirigir
......também com o joão sérgio palma, o pim-teatro]
o patraquim ?
não tenho a certeza do patraquim
não interessa
numa manhã – seria inverno?
o jorge estava sentado
numa mesa do café arcada
numas mesas atrás
eu
ele sozinho
eu
também
ele a ler o jornal – juraria que "o público"
à sua frente tinha um montinho de livros
e muitas folhas de papel a4 enfiadas
em plásticas e coloridas pastas
e lia
e escrevia
e ia acendendo cigarros
reparei que nunca largava o isqueiro
um vulgar isqueiro bic que agarrava como
se temesse a perda de um valioso objecto
terá sido isto em 92? 93?
não me consigo lembrar
talvez uma hora depois
os actores – os ainda quase actores
participantes nesse tal espectáculo
foram chegando
aproximando-se da mesa
ensonados
balbuciando arrastados bons-dias
o jorge respondia-lhes
com um aceno da mão esquerda
em menos de quinze minutos
à volta daquela mesa
juntaram-se umas quantas
gentes à procura de uma personagem
de um autor do teatro de... só à procura
a única coisa que se ouvia no meio da conversa
e de vez em quando
eram as sonoras gargalhadas do jorge silva melo
aqui há dias
dez?
onze? anos depois
ele esteve na abril em maio
numa sessão sobre livros leituras e seus passadores
sessão de um ciclo em que gostei muito
de participar
lembro-me agora disto
– da cena no café arcada –
das voltas que a vida já deu
das pessoas que ali se sentaram
das gargalhadas
dos livros
das folhas a4 nas pastas coloridas
nos sonhos daqueles jovens-ainda-quase-actores
e das suas procuras
e das dele
do jorge de então
e dele agora
durante essa sessão na abril em maio
fotografei-o muitas vezes
tinha-o avisado durante o jantar de que o ia
fazer
e como ele não mostrou importar-se abusei
concentrei cada fotograma no seu rosto
e o resultado disso impressionou-me
inesperadamente
fez-me pensar sobre ele sobre as suas opções
sobre estes anos que passaram
e
acima de tudo em muitas picardias
mesmo antipatias que tinha desenhado em mim
sobre ele sobre as suas atitudes
sobre as suas acções e iniciativas e projectos
naquela sessão
naquela noite
fiquei a gostar do jorge silva melo
talvez ele não tenha dito nada que já não
tivesse dito
talvez não tivesse sido uma sessão de novidades
e até houve por parte da assistência umas
intervenções patetas que nitidamente
aborreceram o fluir daquele encontro
é o costume
há sempre umas pessoas que aproveitam
estas ocasiões para tentarem pôr em evidência
as suas frustrações
as suas faltas de vida
as suas vidas em falta
até talvez aquela intempestiva intervenção
de um cineasta ressabiado me tenha
interessado pela expressão que o rosto
do jorge me causou naquela noite
só tomei consciência disto depois de ver
as fotografias que tinha feito
não se fique a pensar que as imagens têm alguma coisa de especial
não têm
quer dizer
para os outros não têm
são só mais umas fotografias do jorge silva melo
para mim não
transportam mais que simples imagens
de um corpo
do corpo do actor
ou do encenador
ou do autor
essas coisas
na solidão daquela presença
revelou-se um brilho
como só brilha a presença da solidão
e nas suas palavras a evidência da necessidade
desesperada de encontrar o que em cada momento
é absolutamente essencial
para que o sangue flua nas veias
e daí possa nascer a centelha
daquilo a que podemos
eventualmente
chamar verdade
durante aquelas duas horas
não foi o rasto da personalidade do homem
que esteve presente
não foram as histórias que se contam disto
e daquilo
não foi o que devia ou não devia ser
em atitudes que se tomaram
o que esteve ali
mesmo à minha frente
foi um olhar claro sobre a vida e o tempo que resta
e
também um olhar de dúvida sobre o que na vida
pode ser escolhido e o que ao tempo pode ser exigido
esse olhar
só pode ter
quem da pele tem a consciência da sua fragilidade
e só esses têm a força de o
transmitir
e foi isso que aconteceu
fora do mercado*
fora da auto-estrada
da linha recta
do caminho programado
mais uma vez de entre os seus dedos
não saiu por um segundo um pequeno isqueiro bic
há objectos preciosos que não podemos perder
há pessoas que é preciso ver para além do que é visível
* título da crónica que JSM assina no jornal "o público"
bons
anos
em évora
o jorge silva melo estava lá a criar um espectáculo
com um grupo de jovens actores
o paulo claro
a alexandra espiridião –
......[com quem vim mais tarde a co-dirigir
......também com o joão sérgio palma, o pim-teatro]
o patraquim ?
não tenho a certeza do patraquim
não interessa
numa manhã – seria inverno?
o jorge estava sentado
numa mesa do café arcada
numas mesas atrás
eu
ele sozinho
eu
também
ele a ler o jornal – juraria que "o público"
à sua frente tinha um montinho de livros
e muitas folhas de papel a4 enfiadas
em plásticas e coloridas pastas
e lia
e escrevia
e ia acendendo cigarros
reparei que nunca largava o isqueiro
um vulgar isqueiro bic que agarrava como
se temesse a perda de um valioso objecto
terá sido isto em 92? 93?
não me consigo lembrar
talvez uma hora depois
os actores – os ainda quase actores
participantes nesse tal espectáculo
foram chegando
aproximando-se da mesa
ensonados
balbuciando arrastados bons-dias
o jorge respondia-lhes
com um aceno da mão esquerda
em menos de quinze minutos
à volta daquela mesa
juntaram-se umas quantas
gentes à procura de uma personagem
de um autor do teatro de... só à procura
a única coisa que se ouvia no meio da conversa
e de vez em quando
eram as sonoras gargalhadas do jorge silva melo
aqui há dias
dez?
onze? anos depois
ele esteve na abril em maio
numa sessão sobre livros leituras e seus passadores
sessão de um ciclo em que gostei muito
de participar
lembro-me agora disto
– da cena no café arcada –
das voltas que a vida já deu
das pessoas que ali se sentaram
das gargalhadas
dos livros
das folhas a4 nas pastas coloridas
nos sonhos daqueles jovens-ainda-quase-actores
e das suas procuras
e das dele
do jorge de então
e dele agora
durante essa sessão na abril em maio
fotografei-o muitas vezes
tinha-o avisado durante o jantar de que o ia
fazer
e como ele não mostrou importar-se abusei
concentrei cada fotograma no seu rosto
e o resultado disso impressionou-me
inesperadamente
fez-me pensar sobre ele sobre as suas opções
sobre estes anos que passaram
e
acima de tudo em muitas picardias
mesmo antipatias que tinha desenhado em mim
sobre ele sobre as suas atitudes
sobre as suas acções e iniciativas e projectos
naquela sessão
naquela noite
fiquei a gostar do jorge silva melo
talvez ele não tenha dito nada que já não
tivesse dito
talvez não tivesse sido uma sessão de novidades
e até houve por parte da assistência umas
intervenções patetas que nitidamente
aborreceram o fluir daquele encontro
é o costume
há sempre umas pessoas que aproveitam
estas ocasiões para tentarem pôr em evidência
as suas frustrações
as suas faltas de vida
as suas vidas em falta
até talvez aquela intempestiva intervenção
de um cineasta ressabiado me tenha
interessado pela expressão que o rosto
do jorge me causou naquela noite
só tomei consciência disto depois de ver
as fotografias que tinha feito
não se fique a pensar que as imagens têm alguma coisa de especial
não têm
quer dizer
para os outros não têm
são só mais umas fotografias do jorge silva melo
para mim não
transportam mais que simples imagens
de um corpo
do corpo do actor
ou do encenador
ou do autor
essas coisas
na solidão daquela presença
revelou-se um brilho
como só brilha a presença da solidão
e nas suas palavras a evidência da necessidade
desesperada de encontrar o que em cada momento
é absolutamente essencial
para que o sangue flua nas veias
e daí possa nascer a centelha
daquilo a que podemos
eventualmente
chamar verdade
durante aquelas duas horas
não foi o rasto da personalidade do homem
que esteve presente
não foram as histórias que se contam disto
e daquilo
não foi o que devia ou não devia ser
em atitudes que se tomaram
o que esteve ali
mesmo à minha frente
foi um olhar claro sobre a vida e o tempo que resta
e
também um olhar de dúvida sobre o que na vida
pode ser escolhido e o que ao tempo pode ser exigido
esse olhar
só pode ter
quem da pele tem a consciência da sua fragilidade
e só esses têm a força de o
transmitir
e foi isso que aconteceu
fora do mercado*
fora da auto-estrada
da linha recta
do caminho programado
mais uma vez de entre os seus dedos
não saiu por um segundo um pequeno isqueiro bic
há objectos preciosos que não podemos perder
há pessoas que é preciso ver para além do que é visível
* título da crónica que JSM assina no jornal "o público"