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domingo, novembro 28, 2004

o princípio # 24 



esta casa
o cão lá fora
ouço nitidamente os seus dentes
arrepelando as cordas de uma lira
(ou será uma harpa?)

noutros tempos
cri
que vacas fardadas me viriam buscar
prender
levar
queimar –
coisas que o devaneio faz brotar
e era para aqui
para neste sótão que sonhava vir encovar-me
enquanto as ouvisse ruminar a casa
como ouço agora o cão a babar-se na tijoleira

sou desertor
de coisas que não sei nomear
e sinto o medo devorador de não ter medo
de até querer ser devorado

um dia
algo
ou alguém
virá buscar-me
mas que lhes interessará este meio-corpo desarticulado?
vão levar uma úlcera humana numa caixinha?

o cão ganiu
a lira foi comida
as cordas da lira descem rapidamente
pelos seus
intestinos delicadamente bailarinos
recortando harmonias – quase – inaudíveis

este cão
começou por ser violoncelista
mas depois vieram as festas de aniversário
as comidas requintadas
os presentes
instrumentos mais fáceis de exercitar
e ele foi desistindo
pouco a pouco do arco do porco
das costelas de carneiro
e da mulher que abraçava entre as pernas da boca

um dia a cabeça do cão cairá solta do pescoço
as pernas desprender-se-ão dos tendões
e quando outras vacas com outras fardas
vierem
.......e um dia virão
.......eu sei que virão
caberemos os dois na caixinha
e nela
o arco
o violoncelo
a lira
(mesmo a harpa)
a cabeça as pernas e os tendões do cão
e eu

tudo vai correr bem
tudo vai correr bem
tudo vai correr bem
tudo vai correr bem

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