sábado, dezembro 31, 2005
tratado secreto da cidade # 13
# 13 – terceira noite – 13 de dezembro – mollerussa/barcelona
23h00
–sabes o que é o amor?
–sei.
–?
–... risco de um pássaro, voando à noite, sem saber o caminho de volta e rindo, rindo, rindo.
–e o que é o riso?
–...o pássaro perdido, pela noite, voando e risco, risco, risco.
–e o que é um pássaro?
–... uma noite. voando. perdida num riso, riscando sem caminho de volta e rindo, rindo, rindo
–... noite?
–um caminho sem pássaro, um risco de riso, rindo, rindo, rindo.
–e caminho?
–... rindo, indo, indo. risco, isco, isco.
–risc...
–tenho o crédito do telemóvel a acabar tenho de desligar... mando-te uma fotografia da estação de comboios: MOLLERUSSA
–dorme bem.
–tu também.
–rindo, rindo, rindo...
–risco.
23h00
–sabes o que é o amor?
–sei.
–?
–... risco de um pássaro, voando à noite, sem saber o caminho de volta e rindo, rindo, rindo.
–e o que é o riso?
–...o pássaro perdido, pela noite, voando e risco, risco, risco.
–e o que é um pássaro?
–... uma noite. voando. perdida num riso, riscando sem caminho de volta e rindo, rindo, rindo
–... noite?
–um caminho sem pássaro, um risco de riso, rindo, rindo, rindo.
–e caminho?
–... rindo, indo, indo. risco, isco, isco.
–risc...
–tenho o crédito do telemóvel a acabar tenho de desligar... mando-te uma fotografia da estação de comboios: MOLLERUSSA
–dorme bem.
–tu também.
–rindo, rindo, rindo...
–risco.
sexta-feira, dezembro 30, 2005
tratado secreto da cidade # 12
# 12 – segunda noite – 12 de dezembro – mollerussa/barcelona
00h10
hotel. hoje, acordei com a voz chorosa de um homem batendo à porta dum quarto. mesmo piso. quarto ao lado? quarto em frente? lá dentro uma mulher não o deixava entrar. quanto mais ele se prostrava à entrada do quarto, mais ela o repelia. de quando em quando ele parava a súplica e o choro para dizer numa voz quase firme, numa espécie de ameaça, numa última, numa repetidamente última, esperança, que se ia embora. como ela não respondia ele voltava rogar-lhe a entrada e a pedir, pedir, pedir, pedir, pedir.
2h00
ela deixou-o entrar. em todo o piso reinou um silêncio pacificador. quase foi possível ouvir o sono tranquilo dos hóspedes.
4h00
despertador. dez graus negativos na rua. vestir. descer. pequeno almoço. na cabeça a voz do homem a pedir entrada no quarto. sempre a bater à minha cabeça. minha cabeça porta de entrada no quarto. o senhor do bar do hotel pediu-me desculpa por não acender as luzes. «sabe, é que se as acendo, entram-me os bêbedos todos pela porta adentro.» com a pouca luz que havia comecei a ler um jornal já com dois ou três dias. página 22. anúncio de um acidente na estrada lérida-barcelona. uma furgoneta que transportava periquitos capotou. o motorista morreu. os periquitos não. vivos. e. com as gaiolas abertas. durante três horas, primeiro a população local, depois os bombeiros tentaram que aves voassem. não voaram. só pequenas, milimétricas deslocações. recusavam qualquer oferta de liberdade e não abandonavam o cadáver do condutor. na fotografia do jornal vê-se um homem espalhando sangue no alcatrão da estrada com o corpo completamente coberto de pássaros. periquitos. muitas e variadas cores, mas principalmente amarelo. quando finalmente conseguiram enfiar o morto dentro da ambulância, sempre a enxotar os animais, voaram em bando para cima da viatura e pousaram junto às sirenes. quando a ambulância arrancou, uns a voar outros agarrados onde podiam seguiram o cadáver até à morgue. durante os dois dias em que o corpo lá esteve não arredaram pé e asa do telhado do hospital. animais tropicais aguentando o frio e a neve do dia e da noite em barcelona. talvez alguns tenham falecido de frio e cansaço, mas quando o carro funerário partiu em direcção ao cemitério eram ainda muitos os que o sobrevoavam. mais de duas centenas. uma nuvem amarela com uns traços de vermelho e azul e verde sobre o negro do funerário. quem for ao local onde está em campa rasa. terra batida. só. com uma placa e um número. adivinhará sem dificuldade onde repousam os restos mortais de don luiz ruíz gáss.
5h30
um homem a chorar desce as escadas e dirige-se ao balcão para pedir a conta do quarto 302. um homem a chorar com umas maletas a pedir, pedir, pedir, pedir, pedir.
00h10
hotel. hoje, acordei com a voz chorosa de um homem batendo à porta dum quarto. mesmo piso. quarto ao lado? quarto em frente? lá dentro uma mulher não o deixava entrar. quanto mais ele se prostrava à entrada do quarto, mais ela o repelia. de quando em quando ele parava a súplica e o choro para dizer numa voz quase firme, numa espécie de ameaça, numa última, numa repetidamente última, esperança, que se ia embora. como ela não respondia ele voltava rogar-lhe a entrada e a pedir, pedir, pedir, pedir, pedir.
2h00
ela deixou-o entrar. em todo o piso reinou um silêncio pacificador. quase foi possível ouvir o sono tranquilo dos hóspedes.
4h00
despertador. dez graus negativos na rua. vestir. descer. pequeno almoço. na cabeça a voz do homem a pedir entrada no quarto. sempre a bater à minha cabeça. minha cabeça porta de entrada no quarto. o senhor do bar do hotel pediu-me desculpa por não acender as luzes. «sabe, é que se as acendo, entram-me os bêbedos todos pela porta adentro.» com a pouca luz que havia comecei a ler um jornal já com dois ou três dias. página 22. anúncio de um acidente na estrada lérida-barcelona. uma furgoneta que transportava periquitos capotou. o motorista morreu. os periquitos não. vivos. e. com as gaiolas abertas. durante três horas, primeiro a população local, depois os bombeiros tentaram que aves voassem. não voaram. só pequenas, milimétricas deslocações. recusavam qualquer oferta de liberdade e não abandonavam o cadáver do condutor. na fotografia do jornal vê-se um homem espalhando sangue no alcatrão da estrada com o corpo completamente coberto de pássaros. periquitos. muitas e variadas cores, mas principalmente amarelo. quando finalmente conseguiram enfiar o morto dentro da ambulância, sempre a enxotar os animais, voaram em bando para cima da viatura e pousaram junto às sirenes. quando a ambulância arrancou, uns a voar outros agarrados onde podiam seguiram o cadáver até à morgue. durante os dois dias em que o corpo lá esteve não arredaram pé e asa do telhado do hospital. animais tropicais aguentando o frio e a neve do dia e da noite em barcelona. talvez alguns tenham falecido de frio e cansaço, mas quando o carro funerário partiu em direcção ao cemitério eram ainda muitos os que o sobrevoavam. mais de duas centenas. uma nuvem amarela com uns traços de vermelho e azul e verde sobre o negro do funerário. quem for ao local onde está em campa rasa. terra batida. só. com uma placa e um número. adivinhará sem dificuldade onde repousam os restos mortais de don luiz ruíz gáss.
5h30
um homem a chorar desce as escadas e dirige-se ao balcão para pedir a conta do quarto 302. um homem a chorar com umas maletas a pedir, pedir, pedir, pedir, pedir.
segunda-feira, dezembro 26, 2005
tratado secreto da cidade # 11
# 11 – primeira noite – 11 de dezembro – mollerussa/barcelona
2h00
o comboio chegou à hora marcada. neste lugar não é permitido que um comboio chegue tarde ou parta antes do horário – nada – tudo tem de correr de forma absolutamente exacta. adamastor vinha carregado com uma grande mala vermelha. durante o dia tudo tinha estado perfeito, sol, gente pelas ruas com um ar agradecido pelo intervalo no imenso frio e neve. e. agora. uma. noite amena. tinha instruções para não dizer nem escutar uma palavra de adamastor. se quiséssemos comunicar deveríamos fazê-lo por escrito e depois entregar esses papéis à central. se trocássemos alguma palavra a central tomaria conhecimento e não restaria outra alternativa ao comité senão a eliminação pelo fogo, a cremação. eu mesmo tinha proposto esta medida de segurança no comité. as cinzas da cremação serviriam depois – caso tal acontecesse – para qualquer trabalho sagrado: salvar doentes, cobrir os corpos de grandes mestres no momento da morte, fazer chá ou mesmo licores... adamastor entregou-me a mala. trocámos um par de «palavras escritas» com indicações sobre os horários de regresso dos comboios. já com a mala na mão acenei de longe a adamastor e regressei ao hotel. antes da alva uma tarefa importante teria ainda de ser realizada.
4h00
estive quase uma hora só a contemplar a mala. a ganhar coragem para a abrir. sentado. nu. chão. vendo-a. vermelha. luzindo no escuro. até que me resolvo a abrir a tampa e começar o trabalho planeado. tal como previsto, lá dentro, sete sacos de seda cada um com uma pedra preciosa: diamante; safira; esmeralda; jaspe; topázio; rubi; ametista. na parte inferior da mala sob um véu roxo outros vários objectos: varinha de ébano, vaso com terra; vaso com água; vaso com sal; vaso com enxofre; vaso com mercúrio; uma vela de cera de abelha; pacote de leite com chocolate; nove paus de incenso nepalês; um punhal; uma faixa dourada; uma faixa grená; outra faixa dourada mais larga; um rolo de papel com a palavra «testamento»; outro papel com o desenho de um galo; um espelho oval; tinta da china em pedra e um pincel; uma lousa de mármore com uma ligeira concavidade circular para fazer a tinta; uma ampulheta, uma bússola e
................e
................uma
................carta, num envelope de um vermelho igual ao da mala com o meu nome escrito a negro na parte da frente em letra latina: amir
5h00
a carta: dia primeiro do ano do macaco de madeira de olhos azuis, meu querido amir, como já pudeste verificar nesta mala vermelha que adamastor te entregou recebeste todos os objectos que te permitirão repor a inocência no caminho dos homens e devolver-lhes a vulnerabilidade. tal como no dia em que julgaram ter-te morto, por muitos séculos os homens pensarão que és a causa da cegueira do espírito, da crueldade e da falta de discernimento da humanidade. não tens de te importar com isso. o teu trabalho é outro. por agora e antes que o dia chegue ao seu meio terás que descobrir como usar os objectos que te foram conferidos. só podes contar com a tua lucidez e inteligência, ainda que daqui te tentemos ajudar como pudermos. a partir de hoje o teu contacto com o comité estará cortado até que por qualquer motivo alguém te volte a tentar matar. terás de agir sempre sozinho. comunicamos-te agora o teu novo nome secreto e sagrado (sabes que é através dele que poderão chegar até ti e de novo tentar terminar com a tua existência, acautela-te pois para que nunca esse nome seja conhecido por mais ninguém): ocirderef. fixa-o e nunca o escrevas. que a paz esteja contigo, pela força, sabedoria e beleza, os teus irmãos maiores. queimei o papel e o envelope. sentei-me num pequeno sofá junto à janela observando os objectos e bebi o leite com chocolate com o coração cheio de serenidade.
2h00
o comboio chegou à hora marcada. neste lugar não é permitido que um comboio chegue tarde ou parta antes do horário – nada – tudo tem de correr de forma absolutamente exacta. adamastor vinha carregado com uma grande mala vermelha. durante o dia tudo tinha estado perfeito, sol, gente pelas ruas com um ar agradecido pelo intervalo no imenso frio e neve. e. agora. uma. noite amena. tinha instruções para não dizer nem escutar uma palavra de adamastor. se quiséssemos comunicar deveríamos fazê-lo por escrito e depois entregar esses papéis à central. se trocássemos alguma palavra a central tomaria conhecimento e não restaria outra alternativa ao comité senão a eliminação pelo fogo, a cremação. eu mesmo tinha proposto esta medida de segurança no comité. as cinzas da cremação serviriam depois – caso tal acontecesse – para qualquer trabalho sagrado: salvar doentes, cobrir os corpos de grandes mestres no momento da morte, fazer chá ou mesmo licores... adamastor entregou-me a mala. trocámos um par de «palavras escritas» com indicações sobre os horários de regresso dos comboios. já com a mala na mão acenei de longe a adamastor e regressei ao hotel. antes da alva uma tarefa importante teria ainda de ser realizada.
4h00
estive quase uma hora só a contemplar a mala. a ganhar coragem para a abrir. sentado. nu. chão. vendo-a. vermelha. luzindo no escuro. até que me resolvo a abrir a tampa e começar o trabalho planeado. tal como previsto, lá dentro, sete sacos de seda cada um com uma pedra preciosa: diamante; safira; esmeralda; jaspe; topázio; rubi; ametista. na parte inferior da mala sob um véu roxo outros vários objectos: varinha de ébano, vaso com terra; vaso com água; vaso com sal; vaso com enxofre; vaso com mercúrio; uma vela de cera de abelha; pacote de leite com chocolate; nove paus de incenso nepalês; um punhal; uma faixa dourada; uma faixa grená; outra faixa dourada mais larga; um rolo de papel com a palavra «testamento»; outro papel com o desenho de um galo; um espelho oval; tinta da china em pedra e um pincel; uma lousa de mármore com uma ligeira concavidade circular para fazer a tinta; uma ampulheta, uma bússola e
................e
................uma
................carta, num envelope de um vermelho igual ao da mala com o meu nome escrito a negro na parte da frente em letra latina: amir
5h00
a carta: dia primeiro do ano do macaco de madeira de olhos azuis, meu querido amir, como já pudeste verificar nesta mala vermelha que adamastor te entregou recebeste todos os objectos que te permitirão repor a inocência no caminho dos homens e devolver-lhes a vulnerabilidade. tal como no dia em que julgaram ter-te morto, por muitos séculos os homens pensarão que és a causa da cegueira do espírito, da crueldade e da falta de discernimento da humanidade. não tens de te importar com isso. o teu trabalho é outro. por agora e antes que o dia chegue ao seu meio terás que descobrir como usar os objectos que te foram conferidos. só podes contar com a tua lucidez e inteligência, ainda que daqui te tentemos ajudar como pudermos. a partir de hoje o teu contacto com o comité estará cortado até que por qualquer motivo alguém te volte a tentar matar. terás de agir sempre sozinho. comunicamos-te agora o teu novo nome secreto e sagrado (sabes que é através dele que poderão chegar até ti e de novo tentar terminar com a tua existência, acautela-te pois para que nunca esse nome seja conhecido por mais ninguém): ocirderef. fixa-o e nunca o escrevas. que a paz esteja contigo, pela força, sabedoria e beleza, os teus irmãos maiores. queimei o papel e o envelope. sentei-me num pequeno sofá junto à janela observando os objectos e bebi o leite com chocolate com o coração cheio de serenidade.
quinta-feira, dezembro 15, 2005
tratado secreto da cidade # 10
# 10 – décimo dia – 10 de dezembro – lisboa
21h00
já vai havendo menos árvores. a estrada. um ou outro caminho de terra batida. parece que o carro conhece o caminho. há menos milhafres. não há ninguém. um tractor. dantes fazia isto de bicicleta. o céu está a ficar negro. vai chover? aqui não chove. ou chove? como é que em dezembro ainda há papoilas? de verão somem-se e agora aparecem de inverno. está tudo ao contrário. terceiro cruzamento à esquerda. uma bala. cartuxos de caçadeira a dar com pau. bolachas, tostas, queijo la vache qui rit, pacotes pequeninos de manteiga. uma faca. cegonhas. já vai havendo menos postes de alta tensão. menos cegonhas por consequência. a igreja junto ao pomar. o cruzeiro. a fonte do cruzeiro. a quinta da família polaca. a seta que aponta o menir. já chove. já chove. tabaco, não esquecer: t-a-b-a-c-o. o veleiro junto ao carvalho, deve ter dado mais trabalho trazer para aqui o barco que pôr o menir em pé. uma bala. uma bala chegava. os comprimidos para as enxaquecas. já chove. ainda bem. aqui nunca chove. já chove, ainda bem. segundo cruzamento à esquerda. gasolina. já é o quinto cão morto que apanho. quase um a cada meia-hora. matam-se cães de trinta em trinta minutos aqui? o revolver. um tiro para o ar e acertava numa nuvem. é melhor não. ainda parava de chover e depois o peso na consciência? não. para o ar não. bolachas, la vache, manteiga, faca, paté de atum, porque não? paté de atum, está decidido. há flores e uma nossa senhora na curva. alguém que morreu ali. chocolates regina. isso, chocolates regina. o cemitério. finalmente o cemitério, depois em frente e à esquerda. um coelho a fugir da chuva. se fosse pato gostava. outro menir. tanto menir. muita pedra estes tipos carregavam. tanto obélix. outro cão. este tinha coleira. olha... uma mulher. e a andar. devia ter-lhe dado boleia? agora já está. quer dizer, não está. está ela, toda molhada. se o meu avô não tivesse morrido... uma baleia de mármore. é verdade. uma baleia de mármore em plena seara. ora, dou a volta à rotunda e há-de lá estar uma seta a dizer osso. lá está: osso. à direita. faço pisca. não vêm ninguém atrás de mim mas gosto deste barulho do pisca em sincronia com o limpa-pára-brisas. limpa depois pára depois brisas. não se percebe. perceber percebe. o vidro pára as brisas e as escovas limpam o vidro que pára as brisas. pois. mas limpa-pára-brisas fica estranho. lá está a placa: osso. deve haver lugar à porta da capela. deixo uma flores, um cartão na bandeja, dou um abraço ao tó e volto para trás. digo pêsames, ou sentimentos? logo vejo o que me sai. dez minutos e volto. paro no supermercado antes. ora, bolachas, a vaca, os pacotinhos de manteiga, os regina... pronto já me esqueci do resto. uma bala?
21h00
já vai havendo menos árvores. a estrada. um ou outro caminho de terra batida. parece que o carro conhece o caminho. há menos milhafres. não há ninguém. um tractor. dantes fazia isto de bicicleta. o céu está a ficar negro. vai chover? aqui não chove. ou chove? como é que em dezembro ainda há papoilas? de verão somem-se e agora aparecem de inverno. está tudo ao contrário. terceiro cruzamento à esquerda. uma bala. cartuxos de caçadeira a dar com pau. bolachas, tostas, queijo la vache qui rit, pacotes pequeninos de manteiga. uma faca. cegonhas. já vai havendo menos postes de alta tensão. menos cegonhas por consequência. a igreja junto ao pomar. o cruzeiro. a fonte do cruzeiro. a quinta da família polaca. a seta que aponta o menir. já chove. já chove. tabaco, não esquecer: t-a-b-a-c-o. o veleiro junto ao carvalho, deve ter dado mais trabalho trazer para aqui o barco que pôr o menir em pé. uma bala. uma bala chegava. os comprimidos para as enxaquecas. já chove. ainda bem. aqui nunca chove. já chove, ainda bem. segundo cruzamento à esquerda. gasolina. já é o quinto cão morto que apanho. quase um a cada meia-hora. matam-se cães de trinta em trinta minutos aqui? o revolver. um tiro para o ar e acertava numa nuvem. é melhor não. ainda parava de chover e depois o peso na consciência? não. para o ar não. bolachas, la vache, manteiga, faca, paté de atum, porque não? paté de atum, está decidido. há flores e uma nossa senhora na curva. alguém que morreu ali. chocolates regina. isso, chocolates regina. o cemitério. finalmente o cemitério, depois em frente e à esquerda. um coelho a fugir da chuva. se fosse pato gostava. outro menir. tanto menir. muita pedra estes tipos carregavam. tanto obélix. outro cão. este tinha coleira. olha... uma mulher. e a andar. devia ter-lhe dado boleia? agora já está. quer dizer, não está. está ela, toda molhada. se o meu avô não tivesse morrido... uma baleia de mármore. é verdade. uma baleia de mármore em plena seara. ora, dou a volta à rotunda e há-de lá estar uma seta a dizer osso. lá está: osso. à direita. faço pisca. não vêm ninguém atrás de mim mas gosto deste barulho do pisca em sincronia com o limpa-pára-brisas. limpa depois pára depois brisas. não se percebe. perceber percebe. o vidro pára as brisas e as escovas limpam o vidro que pára as brisas. pois. mas limpa-pára-brisas fica estranho. lá está a placa: osso. deve haver lugar à porta da capela. deixo uma flores, um cartão na bandeja, dou um abraço ao tó e volto para trás. digo pêsames, ou sentimentos? logo vejo o que me sai. dez minutos e volto. paro no supermercado antes. ora, bolachas, a vaca, os pacotinhos de manteiga, os regina... pronto já me esqueci do resto. uma bala?
no NOTAS SOBRE LIVROS...
Harold Pinter, o discurso do Nobel.
Tradução de Jorge Silva Melo
quarta-feira, dezembro 14, 2005
tratado secreto da cidade # 9
# 9 – 9 de dezembro – lisboa
8h00
- padre?
- sim, estou a ouvir-te.
- é estranho não lhe ver a cara...
- preferes ver-me, queres falar comigo lá dentro?
- não, é só estranho, mas não me incomoda... prefiro assim.
- como queiras. diz-me então, porque me procuras, posso ajudar-te?
- não sei, pode?
- não sei, posso?
- padre?
- sim, eu estou a ouvir-te, não te preocupes com isso.
- não é isso, sei que me ouve. há quanto tempo é que é padre?
- três anos.
- quantas horas trabalha por dia?
- do meio-dia à meia-noite.
- padre?
- sim...
- que horas são?
- meio-dia em ponto.
- então está na hora de começar o seu trabalho.
- sim, queres acompanhar-me?
- acompanhá-lo? trabalhar consigo?
- sim.
- do meio-dia à meia noite?
- sim, do meio-dia à meia noite. [ouvem-se sinos] ouves? o trabalho foi declarado iniciado.
- iniciado?
- sim, tocam os sinos quando os trabalhos são declarados abertos.
- abertos?
- sim, quando está na hora. quando é a hora.
- meio-dia em ponto?
- meio-dia em ponto.
- padre?
- sim?
- não quero trabalhar aqui.
- então vai... és livre?
- sou.
- então se és livre vai, nada te cativa a mim ou a este lugar.
- padre?
- sim...
- acredita em deus?
- depende do que estiveres a falar.
- não sei explicar, só sei dizer a palavra, soletrar.
- então não te posso responder. como posso eu saber se estamos a falar da mesma coisa. se eu disser sim ou disser não... tu saberás a que sim me refiro, a que não?
- a palavra existe, não significa nada só por si?
- não sei, significa?
- padre?
- sim?
- é sempre assim, quer dizer, o seu trabalho é sempre assim?
- sempre, do meio-dia à meia-noite.
- padre?
- sim?
- que horas são?
- meia-noite em ponto. [ouvem-se sinos] os trabalhos estão encerrados por hoje.
- padre?
- sim?
- posso ir... em paz?
- és livre?
8h00
- padre?
- sim, estou a ouvir-te.
- é estranho não lhe ver a cara...
- preferes ver-me, queres falar comigo lá dentro?
- não, é só estranho, mas não me incomoda... prefiro assim.
- como queiras. diz-me então, porque me procuras, posso ajudar-te?
- não sei, pode?
- não sei, posso?
- padre?
- sim, eu estou a ouvir-te, não te preocupes com isso.
- não é isso, sei que me ouve. há quanto tempo é que é padre?
- três anos.
- quantas horas trabalha por dia?
- do meio-dia à meia-noite.
- padre?
- sim...
- que horas são?
- meio-dia em ponto.
- então está na hora de começar o seu trabalho.
- sim, queres acompanhar-me?
- acompanhá-lo? trabalhar consigo?
- sim.
- do meio-dia à meia noite?
- sim, do meio-dia à meia noite. [ouvem-se sinos] ouves? o trabalho foi declarado iniciado.
- iniciado?
- sim, tocam os sinos quando os trabalhos são declarados abertos.
- abertos?
- sim, quando está na hora. quando é a hora.
- meio-dia em ponto?
- meio-dia em ponto.
- padre?
- sim?
- não quero trabalhar aqui.
- então vai... és livre?
- sou.
- então se és livre vai, nada te cativa a mim ou a este lugar.
- padre?
- sim...
- acredita em deus?
- depende do que estiveres a falar.
- não sei explicar, só sei dizer a palavra, soletrar.
- então não te posso responder. como posso eu saber se estamos a falar da mesma coisa. se eu disser sim ou disser não... tu saberás a que sim me refiro, a que não?
- a palavra existe, não significa nada só por si?
- não sei, significa?
- padre?
- sim?
- é sempre assim, quer dizer, o seu trabalho é sempre assim?
- sempre, do meio-dia à meia-noite.
- padre?
- sim?
- que horas são?
- meia-noite em ponto. [ouvem-se sinos] os trabalhos estão encerrados por hoje.
- padre?
- sim?
- posso ir... em paz?
- és livre?
terça-feira, dezembro 13, 2005
tratado secreto da cidade # 8
# 8 – dia oitavo – 8 de dezembro - lisboa
6h10
gostava de ir a um alfaiate. daqueles que amavam o corpo dos clientes, conheciam e distinguiam cada um só pelo toque apurado daqueles dedos operários. não sei se ainda existem. é possível que sim, um ou outro, sobreviventes da invasão facínora dos «costureiros». (também fazem fatos por medida mas desprezam os clientes.) os alfaiates eram uma classe educada pelos sentidos, pela sensualidade, pelo verdadeiro amor. gostava de ter roupa assim, saída de um acto tão íntimo. era quase uma relação fiel-padre confessor. e era mesmo. tenho um casaco assim, de veludo, pertencia ao meu avô carlos. veludo preto. preto como nunca vi num tecido e bem feitas as contas já deve ter uns 60 anos. esse casaco foi gerado assim, nessa relação íntima e sensual entre o meu avô e o seu alfaiate. nos caixotes que guardam as centenas de fotografias tiradas pelo meu avô havia, talvez ainda para lá esteja, uma fotografia do sr. gonçalves. sei a toda a história dele: ainda não era velho, afogado em dívidas e incapaz de pagar as prestações aos agiotas, vestiu o fraque de um freguês, ainda alinhavado, todo a descoser-se, cheio de alfinetes de cabecinha, deitou-se na banheira e deu um tiro na boca. foi o meu avô quem lhe passou o atestado de óbito mentindo quanto à causa da morte, pois se viesse a verdade do suicídio ao de cima a viúva ficava sem a pensão de sobrevivência. escreveu no atestado que tinha morrido num acidente de caça. pobre sr. gonçalves que nunca caçou na vida. durante uns três ou quatro meses o meu avô ainda andou a pagar dividas aos agiotas para que eles não ameaçassem a desgraçada da viúva. às vezes ao jantar aquilo vinha-lhe à memória e dizia entredentes: «mas porque é que o raio do homem não me disse que precisava de dinheiro. maldito orgulho operário... operários e aristocratas, têm todos a doença do orgulho.» depois da morte do sr. gonçalves o meu avô nunca mais mandou fazer um fato. quando morreu a roupa dele – diziam as criadas – nem serviam para esfregar o chão. deixou-me intactos o casaco de veludo e um smoking feitos pelo sr. gonçalves. quando as manhãs estão frias, como a de hoje, imagino sempre a beleza que seria sentir nas costas uns dedos suaves desenhando incompreensíveis garatujas a giz sobre uma fazenda de lã.
6h10
gostava de ir a um alfaiate. daqueles que amavam o corpo dos clientes, conheciam e distinguiam cada um só pelo toque apurado daqueles dedos operários. não sei se ainda existem. é possível que sim, um ou outro, sobreviventes da invasão facínora dos «costureiros». (também fazem fatos por medida mas desprezam os clientes.) os alfaiates eram uma classe educada pelos sentidos, pela sensualidade, pelo verdadeiro amor. gostava de ter roupa assim, saída de um acto tão íntimo. era quase uma relação fiel-padre confessor. e era mesmo. tenho um casaco assim, de veludo, pertencia ao meu avô carlos. veludo preto. preto como nunca vi num tecido e bem feitas as contas já deve ter uns 60 anos. esse casaco foi gerado assim, nessa relação íntima e sensual entre o meu avô e o seu alfaiate. nos caixotes que guardam as centenas de fotografias tiradas pelo meu avô havia, talvez ainda para lá esteja, uma fotografia do sr. gonçalves. sei a toda a história dele: ainda não era velho, afogado em dívidas e incapaz de pagar as prestações aos agiotas, vestiu o fraque de um freguês, ainda alinhavado, todo a descoser-se, cheio de alfinetes de cabecinha, deitou-se na banheira e deu um tiro na boca. foi o meu avô quem lhe passou o atestado de óbito mentindo quanto à causa da morte, pois se viesse a verdade do suicídio ao de cima a viúva ficava sem a pensão de sobrevivência. escreveu no atestado que tinha morrido num acidente de caça. pobre sr. gonçalves que nunca caçou na vida. durante uns três ou quatro meses o meu avô ainda andou a pagar dividas aos agiotas para que eles não ameaçassem a desgraçada da viúva. às vezes ao jantar aquilo vinha-lhe à memória e dizia entredentes: «mas porque é que o raio do homem não me disse que precisava de dinheiro. maldito orgulho operário... operários e aristocratas, têm todos a doença do orgulho.» depois da morte do sr. gonçalves o meu avô nunca mais mandou fazer um fato. quando morreu a roupa dele – diziam as criadas – nem serviam para esfregar o chão. deixou-me intactos o casaco de veludo e um smoking feitos pelo sr. gonçalves. quando as manhãs estão frias, como a de hoje, imagino sempre a beleza que seria sentir nas costas uns dedos suaves desenhando incompreensíveis garatujas a giz sobre uma fazenda de lã.
segunda-feira, dezembro 12, 2005
tratado secreto da cidade # 7
# 7 – dia sétimo – 7 de dezembro – lisboa
8h00
o que me desespera é saber, ter a certeza, que para ti o assassínio do unicórnio não significou nada... foi um trabalho nosso. durante meses conquistámos a sua amizade, os dois. durante meses tomámos refeições com ele, os dois. montámos e cavalgámos montados sobre a sua garupa, os dois. sempre os dois. os dois e ele na floresta de cedros no centro da cidade. não sou melhor que tu. eu sei. ainda assim desespera-me... só nós sabíamos o segredo que possibilitava chamá-lo, a fórmula de encantamento que o traria até nós estivesse ele a que distância fosse. sabíamos e agimos sempre com uma intenção de morte. a cidade era o local perfeito onde tudo pode ser ocultado. junto à floresta, parávamos o carro, enxotávamos o enxame de prostitutas que logo se abeirava da viatura. bastava simular alguns jogos sexuais, uns beijos fingidos, para que elas se pusessem a andar praguejando todos os palavrões que lhes passavam pela cabeça: «paneleiros, picolhos, rotos, panascas.» mal acabava o circo e elas se desvaneciam no escuro saíamos para o frio, convictos, motivados. e era simples. tínhamos o feitiço, a flauta-que-tudo-encanta, a espada flamejante e excitava-nos acreditar que assassinando o unicórnio, assinando a inocência, estaríamos a libertar a humanidade da ignorância, da cegueira. e acreditámos em tudo, sem dúvidas. esse foi o nosso erro. agora já está. não há lágrima de fénix que possa sarar esta ferida. até o unicórnio acreditou em nós e nas nossas convicções. nós não o traímos ele sempre soube o que íamos fazer e assim nos revelou a única palavra que permitiria completar o trabalho: o seu nome secreto, consciente que ao fazê-lo nós poderíamos levar a cabo o santo sacrifício. arim. disse-nos. o meu nome é arim. cumprimos o combinado. parámos o automóvel na estrada junto à floresta, afastámos as prostitutas com a técnica habitual, entoamos a musica-que-não-se-ouve usando a flauta-que-tudo-encanta. dissemos as palavras-que-tudo-enfeitiçam. e tu, arim, ali estavas, ajoelhado à nossa frente com o corno apontado a terra, nossa única testemunha, numa vénia de morte e lua. depois, depois o silêncio das mãos segurando na espada que flameja penetrando-lhe o pescoço com fogo. amir fechou os olhos para nos mostrar o quanto nos agradecia. queria que acreditássemos que dormia em paz. e dormia. em paz! paz! o que me desespera é agora olhar-te e saber, ter a certeza, que para ti o assassínio de amir não significou nada... o que me desespera é saber que tu não existes. que fui só eu quem o matou. que tu és uma invenção minha para aguentar a solidão daquilo em que julgo acreditar. o que me desespera é ter de admitir-lo.
.......seria realmente amir o guardião da inocência do mundo e por isso o responsável pela ignorância e pela cegueira do mundo? tê-lo matado salvou a humanidade da obscuridade em que vive?
guiei até casa consciente de não ter estado à altura do ritual que pratiquei. apenas iluminado pela luz da lua, deitei-me vestido. senti ao meu lado um corpo quente entre os lençóis. com medo acendi um pequeno círio e voltei-me. mesmo ali, acabado de nascer, ainda envolto na placenta, um branco, bebé, unicórnio abria os olhos.
8h00
o que me desespera é saber, ter a certeza, que para ti o assassínio do unicórnio não significou nada... foi um trabalho nosso. durante meses conquistámos a sua amizade, os dois. durante meses tomámos refeições com ele, os dois. montámos e cavalgámos montados sobre a sua garupa, os dois. sempre os dois. os dois e ele na floresta de cedros no centro da cidade. não sou melhor que tu. eu sei. ainda assim desespera-me... só nós sabíamos o segredo que possibilitava chamá-lo, a fórmula de encantamento que o traria até nós estivesse ele a que distância fosse. sabíamos e agimos sempre com uma intenção de morte. a cidade era o local perfeito onde tudo pode ser ocultado. junto à floresta, parávamos o carro, enxotávamos o enxame de prostitutas que logo se abeirava da viatura. bastava simular alguns jogos sexuais, uns beijos fingidos, para que elas se pusessem a andar praguejando todos os palavrões que lhes passavam pela cabeça: «paneleiros, picolhos, rotos, panascas.» mal acabava o circo e elas se desvaneciam no escuro saíamos para o frio, convictos, motivados. e era simples. tínhamos o feitiço, a flauta-que-tudo-encanta, a espada flamejante e excitava-nos acreditar que assassinando o unicórnio, assinando a inocência, estaríamos a libertar a humanidade da ignorância, da cegueira. e acreditámos em tudo, sem dúvidas. esse foi o nosso erro. agora já está. não há lágrima de fénix que possa sarar esta ferida. até o unicórnio acreditou em nós e nas nossas convicções. nós não o traímos ele sempre soube o que íamos fazer e assim nos revelou a única palavra que permitiria completar o trabalho: o seu nome secreto, consciente que ao fazê-lo nós poderíamos levar a cabo o santo sacrifício. arim. disse-nos. o meu nome é arim. cumprimos o combinado. parámos o automóvel na estrada junto à floresta, afastámos as prostitutas com a técnica habitual, entoamos a musica-que-não-se-ouve usando a flauta-que-tudo-encanta. dissemos as palavras-que-tudo-enfeitiçam. e tu, arim, ali estavas, ajoelhado à nossa frente com o corno apontado a terra, nossa única testemunha, numa vénia de morte e lua. depois, depois o silêncio das mãos segurando na espada que flameja penetrando-lhe o pescoço com fogo. amir fechou os olhos para nos mostrar o quanto nos agradecia. queria que acreditássemos que dormia em paz. e dormia. em paz! paz! o que me desespera é agora olhar-te e saber, ter a certeza, que para ti o assassínio de amir não significou nada... o que me desespera é saber que tu não existes. que fui só eu quem o matou. que tu és uma invenção minha para aguentar a solidão daquilo em que julgo acreditar. o que me desespera é ter de admitir-lo.
.......seria realmente amir o guardião da inocência do mundo e por isso o responsável pela ignorância e pela cegueira do mundo? tê-lo matado salvou a humanidade da obscuridade em que vive?
guiei até casa consciente de não ter estado à altura do ritual que pratiquei. apenas iluminado pela luz da lua, deitei-me vestido. senti ao meu lado um corpo quente entre os lençóis. com medo acendi um pequeno círio e voltei-me. mesmo ali, acabado de nascer, ainda envolto na placenta, um branco, bebé, unicórnio abria os olhos.
sexta-feira, dezembro 09, 2005
tratado secreto da cidade # 6
# 6 – sexto dia – 6 de dezembro – évora
19h50
estou na última grande cidade marroquina antes do saara. quem nunca passou por esta espera não tem a menor ideia do que é estar à beira da verdadeira vertigem, neste lugar onde o chão do mar se pressente, o coração bate desenfreadamente, se vêem claramente anjos no céu barrento e o deserto ainda oculto, fechado num cofre de sombras e montanhas. não sei se vou entrar no inferno se no grande e perfeito paraíso bíblico do temeroso deus do antigo testamento. nem consigo dormir nem estar acordado. por isso ando de um lado para o outro. as ruas são tão escuras que mal se vêem os pés. terei pés? quero comprar tabaco. o tabaco marroquino é o melhor tabaco do mundo. barato, cheira a mel e os cigarros queimam muito devagar. à porta de um café estão dois homens de mãos dada a beijar-se. um tem uma djelaba azul o outro preta. não param de se beijar. estranho que ambos tenham uma das mãos, a que não está oferecida ao outro, dentro dos bolsos. estão indiferentes a tudo. entro e peço um maço de cigarros, falo em francês mas o homem do café sabe logo que sou português. os marroquinos sabem sempre as nacionalidades das pessoas. é impossível enganá-los. também porque haveria eu de os querer enganar? só se fosse espanhol. eles detestam os espanhóis. mal contactam com um espanhol vem-lhes logo ceuta à garganta. vomitam-se. mas gostam dos portugueses. vá-se-lá entender estas coisas. dá-me o maço. gentil e prestativo. em cinco minutos de conversa conta-me mais coisas da história de portugal do que tudo o que ouvi na escola no pouco tempo em por lá andei. os marroquinos sabem tudo sobre a história de portugal. coisas que não se compreendem. quando saio os dois homens ainda se estão a beijar mas já trocaram as mãos de bolso. quando me cruzo com eles param de se beijar e perguntam-me se quero comprar uma pistola. é isso que eles têm dentro dos bolsos? digo que não, eles retomam o beijo. vou com passo rápido na direcção do hotel deixando um rasto de fumo com cheiro a mel. já estou mais calmo. se tivesse conseguido chegar ao hotel talvez tivesse conseguido adormecer e aguardar pela madrugada com serenidade, para a viagem, para partir. mas encontrei um brinco prateado, reluzente à luz de uma lua fosca muito alta, única fonte de iluminação. peguei no brinco e li em letras romanas a palavra fátima (seria o nome da filha de mohamed? seria a virgem dos pastorinhos? será a filha de mohamed e a virgem dos pastorinhos a mesma pessoa, quer dizer, o mesmo ser?) já não estou capaz de andar. vindo do brinco prateado uma suave melodia anuncia-me qualquer coisa que me paralisa. não acredito que isto me esteja a acontecer. logo ali. és tu, fátima – seja lá o que isso for ou quem «isso» for? da minha mão, vindo de um brinco de princesa: «heróis do mar/ nobre povo/ nação valente e imortal...»
19h50
estou na última grande cidade marroquina antes do saara. quem nunca passou por esta espera não tem a menor ideia do que é estar à beira da verdadeira vertigem, neste lugar onde o chão do mar se pressente, o coração bate desenfreadamente, se vêem claramente anjos no céu barrento e o deserto ainda oculto, fechado num cofre de sombras e montanhas. não sei se vou entrar no inferno se no grande e perfeito paraíso bíblico do temeroso deus do antigo testamento. nem consigo dormir nem estar acordado. por isso ando de um lado para o outro. as ruas são tão escuras que mal se vêem os pés. terei pés? quero comprar tabaco. o tabaco marroquino é o melhor tabaco do mundo. barato, cheira a mel e os cigarros queimam muito devagar. à porta de um café estão dois homens de mãos dada a beijar-se. um tem uma djelaba azul o outro preta. não param de se beijar. estranho que ambos tenham uma das mãos, a que não está oferecida ao outro, dentro dos bolsos. estão indiferentes a tudo. entro e peço um maço de cigarros, falo em francês mas o homem do café sabe logo que sou português. os marroquinos sabem sempre as nacionalidades das pessoas. é impossível enganá-los. também porque haveria eu de os querer enganar? só se fosse espanhol. eles detestam os espanhóis. mal contactam com um espanhol vem-lhes logo ceuta à garganta. vomitam-se. mas gostam dos portugueses. vá-se-lá entender estas coisas. dá-me o maço. gentil e prestativo. em cinco minutos de conversa conta-me mais coisas da história de portugal do que tudo o que ouvi na escola no pouco tempo em por lá andei. os marroquinos sabem tudo sobre a história de portugal. coisas que não se compreendem. quando saio os dois homens ainda se estão a beijar mas já trocaram as mãos de bolso. quando me cruzo com eles param de se beijar e perguntam-me se quero comprar uma pistola. é isso que eles têm dentro dos bolsos? digo que não, eles retomam o beijo. vou com passo rápido na direcção do hotel deixando um rasto de fumo com cheiro a mel. já estou mais calmo. se tivesse conseguido chegar ao hotel talvez tivesse conseguido adormecer e aguardar pela madrugada com serenidade, para a viagem, para partir. mas encontrei um brinco prateado, reluzente à luz de uma lua fosca muito alta, única fonte de iluminação. peguei no brinco e li em letras romanas a palavra fátima (seria o nome da filha de mohamed? seria a virgem dos pastorinhos? será a filha de mohamed e a virgem dos pastorinhos a mesma pessoa, quer dizer, o mesmo ser?) já não estou capaz de andar. vindo do brinco prateado uma suave melodia anuncia-me qualquer coisa que me paralisa. não acredito que isto me esteja a acontecer. logo ali. és tu, fátima – seja lá o que isso for ou quem «isso» for? da minha mão, vindo de um brinco de princesa: «heróis do mar/ nobre povo/ nação valente e imortal...»
quinta-feira, dezembro 08, 2005
tratado secreto da cidade # 5
# 5 – dia quinto – 5 de dezembro – lisboa
22h00
conheço-a há duas horas e aqui estou. sou eu, mesmo eu, na noite deste dia, sem amor sem nomes ditos. porquê? para quê? aqui estou, com o meu corpo aberto em antiquíssimas chagas, tão antigas que já ganharam musgo. a mulher despe-se. eu tento impedi-la. ela despe-se. eu tento fugir dali. ela deita-se. eu fico parado. na cidade está tudo programado. será que não se consegue alterar nada? tudo tão terrificamente planeado. robótico. antes ela tinha ido à casa de banho. previsível, saiu a cheirar a desodorizante. demasiado. para me agradar? eu quieto a fumar. só de pensar em tirar a gabardina me dá nojo. o sabor do cigarro dá-me nojo, mas é o que me salva da total imobilidade. a um canto daquele quarto sordidamente arrumado estão duas poltronas de cabedal já gasto, com aquelas «orelhas» onde se pode encostar a cabeça e deixar o sono flutuar leitura a dentro. as poltronas dos meus sonhos. a única vontade que sinto é a de me sentar numa delas e pedir àquela rapariga que também o fizesse. pedir-lhe que se desprogramasse daquela encenação insuportável. podia continuar nua. também eu me podia despir e ficarmos ali, os dois, sentados nas poltronas até que as cabeças nos tombassem nas «orelhas» de cabedal. ficaríamos face a face. corajosos, prontos para enfrentar os nossos olhos, acontecesse o que acontecesse. principalmente o maior de todos os desafios, o «poço da morte» dos desafios: o silêncio. assim, nus e corajosos, face a face nas poltronas. mas quando a olho, naquela cama sem história (mesmo para ela que se ali deita todos os dias [imagino] ), disponível. disponível porque sim, porque alguém lhe disse que esse o procedimento a ter nestas situações. «o que é que se passa? não vens?»
22h00
conheço-a há duas horas e aqui estou. sou eu, mesmo eu, na noite deste dia, sem amor sem nomes ditos. porquê? para quê? aqui estou, com o meu corpo aberto em antiquíssimas chagas, tão antigas que já ganharam musgo. a mulher despe-se. eu tento impedi-la. ela despe-se. eu tento fugir dali. ela deita-se. eu fico parado. na cidade está tudo programado. será que não se consegue alterar nada? tudo tão terrificamente planeado. robótico. antes ela tinha ido à casa de banho. previsível, saiu a cheirar a desodorizante. demasiado. para me agradar? eu quieto a fumar. só de pensar em tirar a gabardina me dá nojo. o sabor do cigarro dá-me nojo, mas é o que me salva da total imobilidade. a um canto daquele quarto sordidamente arrumado estão duas poltronas de cabedal já gasto, com aquelas «orelhas» onde se pode encostar a cabeça e deixar o sono flutuar leitura a dentro. as poltronas dos meus sonhos. a única vontade que sinto é a de me sentar numa delas e pedir àquela rapariga que também o fizesse. pedir-lhe que se desprogramasse daquela encenação insuportável. podia continuar nua. também eu me podia despir e ficarmos ali, os dois, sentados nas poltronas até que as cabeças nos tombassem nas «orelhas» de cabedal. ficaríamos face a face. corajosos, prontos para enfrentar os nossos olhos, acontecesse o que acontecesse. principalmente o maior de todos os desafios, o «poço da morte» dos desafios: o silêncio. assim, nus e corajosos, face a face nas poltronas. mas quando a olho, naquela cama sem história (mesmo para ela que se ali deita todos os dias [imagino] ), disponível. disponível porque sim, porque alguém lhe disse que esse o procedimento a ter nestas situações. «o que é que se passa? não vens?»
............não, não irei mas não te posso dizer assim.
«sabes o que é que eu gostava?» – «diz, não tenhas vergonha» – «não, não tenho vergonha, gostava que viesses, que nos sentássemos os dois naquelas poltronas e ficássemos assim, os dois, despidos, só a ver-nos, se tivéssemos frio ligava-se o aquecedor, talvez conversássemos, talvez...» foi uma frase curta e logo interrompida por uma aflição súbita dela. desatou a tapar-se com os lençóis e uma expressão de total desapontamento (pensei que era comigo que ela se sentia desapontada, mas afinal não, ela sentia-se desapontada com ela própria). pediu-me desculpa, e uma outra vez, e outra e outra e eu dizendo-lhe que era um disparate que não era nada disso, que não se tratava de culpa nem de culpados, que tinha sido só um pedido, uma ideia que me passara pela cabeça. nem me ouvia. «eu sei que não sou bonita, eu sei, eu sei... julguei que quisesses, desculpa, desculpa, desculpa desculpa»
..........devia ter dito apenas que não, que me ia embora
«não disse nada disso, tu és bonita, que disparate tudo isto, só sugeri que viéssemos os dois para as poltronas e...»
? mas eu não te atraio
? sim, atrais-me, mas pensei que pudéssemos...
? mas...
sem querer toquei com o pé numa coisa escondida entre os pelos altos de um tapete a meio do quarto, um relógio partido, com os ponteiros parados nas 22h00, peguei-lhe instintivamente e meti-o no bolso. ela nem reparou de tão lavada em lágrimas que estava. olhei-a e tentei uma última vez. «olha, ainda só são 10h da noite, temos tempo, porque não experimentas comigo as poltronas?» nem me respondeu.
isto tudo está a ser uma violência enorme para ti não é? não estás programada para nada disto. não sabes, é-te impossível lidar com esta situação.
? desculpa-me a mim.
senti-me feliz por não ter sequer tirado a gabardina. saí. na rua a cidade pareceu-me muito pequena, fui andando até ao cais onde um dia esteve ancorado um navio – memória de um tempo excepcionalmente doce – agora vazio, de pessoa, de pessoas de barcos, de automóveis, só rio. tejo-quase-mar. tirei o relógio do bolso. 22h00. ainda temos temp
..........devia ter dito apenas que não, que me ia embora
«não disse nada disso, tu és bonita, que disparate tudo isto, só sugeri que viéssemos os dois para as poltronas e...»
? mas eu não te atraio
? sim, atrais-me, mas pensei que pudéssemos...
? mas...
sem querer toquei com o pé numa coisa escondida entre os pelos altos de um tapete a meio do quarto, um relógio partido, com os ponteiros parados nas 22h00, peguei-lhe instintivamente e meti-o no bolso. ela nem reparou de tão lavada em lágrimas que estava. olhei-a e tentei uma última vez. «olha, ainda só são 10h da noite, temos tempo, porque não experimentas comigo as poltronas?» nem me respondeu.
isto tudo está a ser uma violência enorme para ti não é? não estás programada para nada disto. não sabes, é-te impossível lidar com esta situação.
? desculpa-me a mim.
senti-me feliz por não ter sequer tirado a gabardina. saí. na rua a cidade pareceu-me muito pequena, fui andando até ao cais onde um dia esteve ancorado um navio – memória de um tempo excepcionalmente doce – agora vazio, de pessoa, de pessoas de barcos, de automóveis, só rio. tejo-quase-mar. tirei o relógio do bolso. 22h00. ainda temos temp
terça-feira, dezembro 06, 2005
tratado secreto da cidade # 4
# 4 – dia quatro – 4 de dezembro – lisboa
7h55
«SE ME PROCURAREM ENCONTRAM-ME SEM DIFICULDADE
ESTOU EM TODA A PARTE»
7h55
«SE ME PROCURAREM ENCONTRAM-ME SEM DIFICULDADE
ESTOU EM TODA A PARTE»
todos os dias saio nesta estação. todos os dias, mal se abem as portas do comboio, dou de frente com esta frase pintada no muro da plataforma número 9. aquilo funciona como um alerta, uma sirene, dirigida a todos os que chegam, a todos os que partem, mas bem mais aos que chegam. ninguém fica indiferente à inscrição: carmim sobre um fundo azul-celeste. ainda mais isso, esse efeito estridente na retina. os que já estão prevenidos devem sentir algum medo porque baixam o olhar, evitando o contacto directo com a mensagem. é fácil constatar que a equipa da manutenção da gare cuida escrupulosamente do seu trabalho. os muros são pintados de fresco pelo menos uma vez por mês. há meses em que pintam duas, até três vezes algumas partes infestadas por grafitis ou por aquelas centenas de assinaturas de caracteres indecifráveis com que miríades de writers toscos enchem cada pedacinho virgem de parede. no entanto, aquela frase nunca foi apagada. nunca. é até fácil de comprovar isso, há quem pense que ela é refeita depois dos operários da manutenção a terem apagado, mas não, quem se der ao trabalho de a analisar de perto, verá que há escorrimentos de tinta, pequenos desastres, imperfeições que seriam impossíveis de refazer de umas vezes para as outras. nem faria qualquer sentido que o autor perdesse tempo a clonar os acidentes da pintura só visíveis a uma curtíssima distância. é óbvio que o que ali interessa é o que está escrito e as cores com que está pintado. definitivamente aquela mensagem só foi escrita uma vez. ontem, talvez hoje de manhã... ontem? bem, não sei bem, mas sim, ontem serve, reparei que alguém, uma outra pessoa que não o autor da primeira pintura, tinha acrescentado um ponto à frase, dando-a assim por concluída. selou-a, fechou-a. onde antes de lia: «SE ME PROCURAREM ENCONTRAM-ME SEM DIFICULDADE ESTOU EM TODA A PARTE», agora lê-se: «SE ME PROCURAREM ENCONTRAM-ME SEM DIFICULDADE ESTOU EM TODA A PARTE .». o primeiro autor tinha deixado a frase aberta, alguma coisa nos deixava suspeitar que a frase ainda podia ser acrescentada, agora, o segundo autor, premeditadamente, decepou essa possibilidade com aquele cruel . .tratam-se, portanto, de duas pessoas com motivações diferentes e que não se conhecem. como é que sei isto? como posso eu ter a certeza de que são duas pessoas e que não se conhecem? é simples, sou eu o autor da pintura da frase naquele muro frente à plataforma número 9. neste momento não consigo encontrar nenhuma explicação para o ter feito, aquela inscrição é tão misteriosa, para mim que a pintei, como para todos os que a vêem, apesar de me lembrar com exactidão da madrugada em que escrevi a frase naquele carmim. posso-vos garantir que não estava sob o efeito de álcool ou qualquer outra droga que não tabaco, mas não vos sei explicar mais nada. e sei que não fui eu que pintei o selo, o .. digo que não fui eu porque só posso dizer eu quando tenho consciência de um «eu» em mim. a memória de um «eu» em mim. e não tenho qualquer consciência ou memória de mim pintando aquele ponto. assim, não vos estou a mentir quando digo que não fui eu quem a fez, mesmo que, por hipótese, possa ter sido através das minhas mãos que o ponto surgiu. dentro de 45 minutos estarei a vestir o fato-macaco cor de laranja que ostenta o logotipo da empresa de manutenção da gare. dentro de 1 hora estarei a arrastar o carrinho com rodas onde transporto os baldes de tinta azul-celeste e as trinchas de vassoura com que, pelo menos uma vez por mês, às vezes mais amiúde, reponho a virgindade aos muros da gare. até à hora do almoço estarei a «limpar» grafitis. talvez algum dia consiga encontrar alguma explicação plausível para o mistério maior: o significado da inscrição e para o menor: a continuidade inalterada da pintura junto à plataforma 9.
segunda-feira, dezembro 05, 2005
tratado secreto da cidade # 3
# 3 – dia terceiro – 3 de dezembro - lisboa
8h20
está voltada para aquele armário há vinte um anos. não me ouve, nem vê. pelo menos dizem-me que ela não me ouve nem vê... não sei, é uma questão de opinião. mas eu falo. falo-lhe sempre. «falo-lhe» é maneira de dizer, falo-me diante dela. quando a visito costumo rodar-lhe a cadeira. faz-me impressão aquela coisa do armário. porque raio aquela sua família a põe sempre de face para o roupeiro? há uma janela mesmo ao lado. está bem que dá para uma lixeira imunda (deram-lhe o pior quarto da casa porque têm a certeza que ela não sente nada), nem se pode abrir a janela tal não é o fedor, mas que diabo, sempre há o céu. há sempre o céu e o céu modifica-se a cada instante... mesmo que ela não o pudesse ver talvez o céu a visse a ela. também não posso falar muito porque quando lhe rodo a cadeira nunca a rodo na direcção da janela. primeiro sento-me numa cadeira de napa azul que está lá sempre. não. primeiro rodo-a na direcção da cadeira de napa azul que está lá sempre, depois é que me sento, fixado no olhos dela por algum tempo. ela tem uns olhos muito castanhos... castanhos quê? não sei, muito castanhos, só isso. apesar de todos me dizerem que os olhos não lhe servem para nada, não consigo deixar de imaginar que uns olhos assim tão infinitos têm necessariamente que ver alguma coisa, uns olhos assim têm que poder olhar. talvez não da maneira que pensamos que os olhos vêem, mas um ver qualquer cuja mecânica física nos seja desconhecida. gosto de pensar assim. não por ela. por mim. faz-me bem pensar assim. além disso brilham. faz-me bem pensar assim. portanto, penso e pronto. acredito. gosto de os observar, castanhos, em silêncio. dez ou quinze minutos bastam. então, então começo a falar. digo-lhe tudo, falo-lhe de tudo. sou completamente transparente com ela. essa é a sua faculdade extraordinária, o seu dom, a sua natureza. só as coisas extraordinárias são naturais, ou, naturais são as coisas extraordinárias. ela é assim. tem esse poder. desbloqueia qualquer travão à nossa capacidade de expressão. na sua presença não há ocultação possível. nem isso surge como um desejo. o impulso é o contrário, sentimos uma imensa energia vómica de tudo revelar. é um dom. o dom daquela mulher. não lhe tenho amizade. quero-lhe bem. porque não haveria de querer? mas nunca criei com aquele ser qualquer espécie de laço afectivo especial. mal acaba a consulta e pago à recepcionista (acho que é tia dela ou faz-se passar por tal), saio para a rua e esqueço-a. só nas noites antes das consultas me volto a recordar dela – vou a quatro sessões por mês, uma por semana – tenho as marcações feitas com muita antecedência. já é um hábito. na noite anterior ao dia da consulta vem-me à memória que no dia seguinte a vou visitar, mas é um pensamento rápido. não fico a pensar nisso. à parte disso houve uma outra vez que recordei os olhos dela, mas também foram pensamentos fugazes. ah!, aconteceu uma vez, só uma vez (agora que falo nisto, talvez me recorde dela mais vezes do que supunha) sonhar com a mão que lhe treme ligeiramente, a esquerda. treme como se tivesse pequenos espasmos. devem mesmo ser micro-espasmos. no sonho aqueles movimentos, aparentemente descontrolados produziam uma melodia num daqueles pianos pequeninos, electrónicos, de brinquedo.
..............as consultas
..............duram uma hora.
rigorosamente uma hora. a mim chega-me. há onze anos, quando a visitei a primeira vez, as consultas eram muito baratas, agora como a procura é imensa os preços aumentaram disparatadamente e aquela gente que conduz o negócio explora os clientes sem piedade. o quarto dela é que está sempre igual. nunca houve uma mudança, pequena que fosse. sempre impecavelmente asseado, aliás como ela, que nunca tem uma única nódoa naquele roupão lilás que veste desde que a conheço. nunca teve outra roupa, um roupão sempre imaculadamente lavado. será não lhe compram um roupão novo por sovinice ou será que de alguma maneira, ela terá, por algum meio que não é revelado aos clientes, manifestado a sua vontade de vestir sempre aquele roupão. nem sei se só o usa nas consultas, nem sei como é que ela come ou vai à casa de banho. nada não sei nada dela nem nunca me passou pela cabeça perguntar o que fosse. simplesmente vou lá e deixo-me levar pelo dom. pelos olhos muito castanhos.
8h20
está voltada para aquele armário há vinte um anos. não me ouve, nem vê. pelo menos dizem-me que ela não me ouve nem vê... não sei, é uma questão de opinião. mas eu falo. falo-lhe sempre. «falo-lhe» é maneira de dizer, falo-me diante dela. quando a visito costumo rodar-lhe a cadeira. faz-me impressão aquela coisa do armário. porque raio aquela sua família a põe sempre de face para o roupeiro? há uma janela mesmo ao lado. está bem que dá para uma lixeira imunda (deram-lhe o pior quarto da casa porque têm a certeza que ela não sente nada), nem se pode abrir a janela tal não é o fedor, mas que diabo, sempre há o céu. há sempre o céu e o céu modifica-se a cada instante... mesmo que ela não o pudesse ver talvez o céu a visse a ela. também não posso falar muito porque quando lhe rodo a cadeira nunca a rodo na direcção da janela. primeiro sento-me numa cadeira de napa azul que está lá sempre. não. primeiro rodo-a na direcção da cadeira de napa azul que está lá sempre, depois é que me sento, fixado no olhos dela por algum tempo. ela tem uns olhos muito castanhos... castanhos quê? não sei, muito castanhos, só isso. apesar de todos me dizerem que os olhos não lhe servem para nada, não consigo deixar de imaginar que uns olhos assim tão infinitos têm necessariamente que ver alguma coisa, uns olhos assim têm que poder olhar. talvez não da maneira que pensamos que os olhos vêem, mas um ver qualquer cuja mecânica física nos seja desconhecida. gosto de pensar assim. não por ela. por mim. faz-me bem pensar assim. além disso brilham. faz-me bem pensar assim. portanto, penso e pronto. acredito. gosto de os observar, castanhos, em silêncio. dez ou quinze minutos bastam. então, então começo a falar. digo-lhe tudo, falo-lhe de tudo. sou completamente transparente com ela. essa é a sua faculdade extraordinária, o seu dom, a sua natureza. só as coisas extraordinárias são naturais, ou, naturais são as coisas extraordinárias. ela é assim. tem esse poder. desbloqueia qualquer travão à nossa capacidade de expressão. na sua presença não há ocultação possível. nem isso surge como um desejo. o impulso é o contrário, sentimos uma imensa energia vómica de tudo revelar. é um dom. o dom daquela mulher. não lhe tenho amizade. quero-lhe bem. porque não haveria de querer? mas nunca criei com aquele ser qualquer espécie de laço afectivo especial. mal acaba a consulta e pago à recepcionista (acho que é tia dela ou faz-se passar por tal), saio para a rua e esqueço-a. só nas noites antes das consultas me volto a recordar dela – vou a quatro sessões por mês, uma por semana – tenho as marcações feitas com muita antecedência. já é um hábito. na noite anterior ao dia da consulta vem-me à memória que no dia seguinte a vou visitar, mas é um pensamento rápido. não fico a pensar nisso. à parte disso houve uma outra vez que recordei os olhos dela, mas também foram pensamentos fugazes. ah!, aconteceu uma vez, só uma vez (agora que falo nisto, talvez me recorde dela mais vezes do que supunha) sonhar com a mão que lhe treme ligeiramente, a esquerda. treme como se tivesse pequenos espasmos. devem mesmo ser micro-espasmos. no sonho aqueles movimentos, aparentemente descontrolados produziam uma melodia num daqueles pianos pequeninos, electrónicos, de brinquedo.
..............as consultas
..............duram uma hora.
rigorosamente uma hora. a mim chega-me. há onze anos, quando a visitei a primeira vez, as consultas eram muito baratas, agora como a procura é imensa os preços aumentaram disparatadamente e aquela gente que conduz o negócio explora os clientes sem piedade. o quarto dela é que está sempre igual. nunca houve uma mudança, pequena que fosse. sempre impecavelmente asseado, aliás como ela, que nunca tem uma única nódoa naquele roupão lilás que veste desde que a conheço. nunca teve outra roupa, um roupão sempre imaculadamente lavado. será não lhe compram um roupão novo por sovinice ou será que de alguma maneira, ela terá, por algum meio que não é revelado aos clientes, manifestado a sua vontade de vestir sempre aquele roupão. nem sei se só o usa nas consultas, nem sei como é que ela come ou vai à casa de banho. nada não sei nada dela nem nunca me passou pela cabeça perguntar o que fosse. simplesmente vou lá e deixo-me levar pelo dom. pelos olhos muito castanhos.
quinta-feira, dezembro 01, 2005
tratado secreto da cidade # 2
# 2 – segundo dia – 2 de dezembro de 2005 – lisboa
21h45
os cães vadios, os cães-livres, eram o amuleto da cidade. durante quase dois mil anos os cães vadios absorveram o mal reflectindo o bem. o homem só é bom na presença dos cães-livres e enquanto existiram cães vadios na cidade existiu o bem nos cidadãos. a cidadania está directamente ligada com a presença de cães-livres na cidade. subtilmente, os cães vadios, que eram maioritários entre os das sua espécie, foram sendo abatidos ao mesmo tempo que se estimulava a adopção de cães domésticos, cativos. ora, os cães cativos têm o efeito exactamente oposto sobre o homem. domésticos, cães, são a expressão máxima da submissão. na sua relação com os carcereiros homens (antropóides?), o exemplo claro do exercício do poder, da força de um sobre a fraqueza doutro. e pelo exemplo, se iniciou a exploração do homem pelo homem, é simples. com o abatimento dos cães-livres, com a destruição dessa corporação fraterna, eliminou-se a última grande comunidade de seres sacerdotalmente dedicados à salvação do bom, do verdadeiro e do belo. com a perseguição e exterminação brutal desta corporação, perderam-se os segredos milenares da alquimia do amor e a cidade ficou à mercê do mal. do mal como energia, porque o mal é impersonalificável. o mal é demasiado demoníaco para encarnar. é por isso que a figura do diabo sempre foi uma figuração do bem, lúcifer – lucifèru, o portador da luz, cão luciferário – o que leva a lanterna numa procissão indicando o caminho, a besta capaz de enfrentar as mais sinistras provações. não sei se fraternidade angélica dos cães-livres continua a existir de forma críptica. se existe, não é uma comunidade suficientemente forte e actuante, e a existir apenas devem agir através de rituais e símbolos, perderam toda a operatividade. os ratos afogaram a cidade com os seus olhos vermelhos. submergiram casas, pessoas, ruas, na lama dos seus pensamentos. emergente, esta burguesia semi-oculta, domina. rápida e implacavelmente. um rato não precisa de quase nada para sobreviver. alimenta-se de quase tudo. até madeira lhes fornece proteínas. é essa a força dos ratos, eles não precisam de nada e por isso podem querer tudo. se saímos à rua pela alva, é raro não nos depararmos com aqueles magotes de gente com ar de regresso (vindos não se sabe de onde, indo não se sabe para onde – talvez tenham casas e famílias...), desfasados de qualquer tempo cronológico, desfasados do tempo solar, do ritmo solar, se lhes fosse perguntado, dificilmente saberiam se era dia ou noite. olhamo-los, e vemos que caminham comandados à distância. programadamente. alarvam por controlo remoto. quando nos cruzamos com esses magotes, não é difícil sentir o odor fétido a mijo de rato exalando-lhes das bocas misturado com o cheiro a cerveja. aliás, todas as ruas já tresandam a esse cheiro. cada esquina está laboriosamente marcada por aquele vapor alucinogénio e inebriados pelo odor daquela substância, os homens estão já capazes de tudo. li uma vez que quando se vê um rato há oitenta ocultos em seu redor. devem haver muitos mais. muitos, muitos mais, escondidos aos milhares, por cada um que se deixa ver. e eles deixam-se ver. só um de cada vez. para que saibamos da sua presença, do seu domínio. claro que continuam a existir gatos. mas é pura ilusão pensar que os gatos nos protegem dos ratos. desde que no antigo egipto foram consagrados entes superiores de um outro universo, de deusas, que os gatos não se envolvem em assuntos da humanidade. os gatos movem-se no estrito território feminino de um plano invisível para nós –, extraterreno, mesmo extrauniversal, desde o egipto que os gatos não se metem com os homens, muito menos nos seus problemas.
21h45
os cães vadios, os cães-livres, eram o amuleto da cidade. durante quase dois mil anos os cães vadios absorveram o mal reflectindo o bem. o homem só é bom na presença dos cães-livres e enquanto existiram cães vadios na cidade existiu o bem nos cidadãos. a cidadania está directamente ligada com a presença de cães-livres na cidade. subtilmente, os cães vadios, que eram maioritários entre os das sua espécie, foram sendo abatidos ao mesmo tempo que se estimulava a adopção de cães domésticos, cativos. ora, os cães cativos têm o efeito exactamente oposto sobre o homem. domésticos, cães, são a expressão máxima da submissão. na sua relação com os carcereiros homens (antropóides?), o exemplo claro do exercício do poder, da força de um sobre a fraqueza doutro. e pelo exemplo, se iniciou a exploração do homem pelo homem, é simples. com o abatimento dos cães-livres, com a destruição dessa corporação fraterna, eliminou-se a última grande comunidade de seres sacerdotalmente dedicados à salvação do bom, do verdadeiro e do belo. com a perseguição e exterminação brutal desta corporação, perderam-se os segredos milenares da alquimia do amor e a cidade ficou à mercê do mal. do mal como energia, porque o mal é impersonalificável. o mal é demasiado demoníaco para encarnar. é por isso que a figura do diabo sempre foi uma figuração do bem, lúcifer – lucifèru, o portador da luz, cão luciferário – o que leva a lanterna numa procissão indicando o caminho, a besta capaz de enfrentar as mais sinistras provações. não sei se fraternidade angélica dos cães-livres continua a existir de forma críptica. se existe, não é uma comunidade suficientemente forte e actuante, e a existir apenas devem agir através de rituais e símbolos, perderam toda a operatividade. os ratos afogaram a cidade com os seus olhos vermelhos. submergiram casas, pessoas, ruas, na lama dos seus pensamentos. emergente, esta burguesia semi-oculta, domina. rápida e implacavelmente. um rato não precisa de quase nada para sobreviver. alimenta-se de quase tudo. até madeira lhes fornece proteínas. é essa a força dos ratos, eles não precisam de nada e por isso podem querer tudo. se saímos à rua pela alva, é raro não nos depararmos com aqueles magotes de gente com ar de regresso (vindos não se sabe de onde, indo não se sabe para onde – talvez tenham casas e famílias...), desfasados de qualquer tempo cronológico, desfasados do tempo solar, do ritmo solar, se lhes fosse perguntado, dificilmente saberiam se era dia ou noite. olhamo-los, e vemos que caminham comandados à distância. programadamente. alarvam por controlo remoto. quando nos cruzamos com esses magotes, não é difícil sentir o odor fétido a mijo de rato exalando-lhes das bocas misturado com o cheiro a cerveja. aliás, todas as ruas já tresandam a esse cheiro. cada esquina está laboriosamente marcada por aquele vapor alucinogénio e inebriados pelo odor daquela substância, os homens estão já capazes de tudo. li uma vez que quando se vê um rato há oitenta ocultos em seu redor. devem haver muitos mais. muitos, muitos mais, escondidos aos milhares, por cada um que se deixa ver. e eles deixam-se ver. só um de cada vez. para que saibamos da sua presença, do seu domínio. claro que continuam a existir gatos. mas é pura ilusão pensar que os gatos nos protegem dos ratos. desde que no antigo egipto foram consagrados entes superiores de um outro universo, de deusas, que os gatos não se envolvem em assuntos da humanidade. os gatos movem-se no estrito território feminino de um plano invisível para nós –, extraterreno, mesmo extrauniversal, desde o egipto que os gatos não se metem com os homens, muito menos nos seus problemas.