sexta-feira, dezembro 09, 2005
tratado secreto da cidade # 6
# 6 – sexto dia – 6 de dezembro – évora
19h50
estou na última grande cidade marroquina antes do saara. quem nunca passou por esta espera não tem a menor ideia do que é estar à beira da verdadeira vertigem, neste lugar onde o chão do mar se pressente, o coração bate desenfreadamente, se vêem claramente anjos no céu barrento e o deserto ainda oculto, fechado num cofre de sombras e montanhas. não sei se vou entrar no inferno se no grande e perfeito paraíso bíblico do temeroso deus do antigo testamento. nem consigo dormir nem estar acordado. por isso ando de um lado para o outro. as ruas são tão escuras que mal se vêem os pés. terei pés? quero comprar tabaco. o tabaco marroquino é o melhor tabaco do mundo. barato, cheira a mel e os cigarros queimam muito devagar. à porta de um café estão dois homens de mãos dada a beijar-se. um tem uma djelaba azul o outro preta. não param de se beijar. estranho que ambos tenham uma das mãos, a que não está oferecida ao outro, dentro dos bolsos. estão indiferentes a tudo. entro e peço um maço de cigarros, falo em francês mas o homem do café sabe logo que sou português. os marroquinos sabem sempre as nacionalidades das pessoas. é impossível enganá-los. também porque haveria eu de os querer enganar? só se fosse espanhol. eles detestam os espanhóis. mal contactam com um espanhol vem-lhes logo ceuta à garganta. vomitam-se. mas gostam dos portugueses. vá-se-lá entender estas coisas. dá-me o maço. gentil e prestativo. em cinco minutos de conversa conta-me mais coisas da história de portugal do que tudo o que ouvi na escola no pouco tempo em por lá andei. os marroquinos sabem tudo sobre a história de portugal. coisas que não se compreendem. quando saio os dois homens ainda se estão a beijar mas já trocaram as mãos de bolso. quando me cruzo com eles param de se beijar e perguntam-me se quero comprar uma pistola. é isso que eles têm dentro dos bolsos? digo que não, eles retomam o beijo. vou com passo rápido na direcção do hotel deixando um rasto de fumo com cheiro a mel. já estou mais calmo. se tivesse conseguido chegar ao hotel talvez tivesse conseguido adormecer e aguardar pela madrugada com serenidade, para a viagem, para partir. mas encontrei um brinco prateado, reluzente à luz de uma lua fosca muito alta, única fonte de iluminação. peguei no brinco e li em letras romanas a palavra fátima (seria o nome da filha de mohamed? seria a virgem dos pastorinhos? será a filha de mohamed e a virgem dos pastorinhos a mesma pessoa, quer dizer, o mesmo ser?) já não estou capaz de andar. vindo do brinco prateado uma suave melodia anuncia-me qualquer coisa que me paralisa. não acredito que isto me esteja a acontecer. logo ali. és tu, fátima – seja lá o que isso for ou quem «isso» for? da minha mão, vindo de um brinco de princesa: «heróis do mar/ nobre povo/ nação valente e imortal...»
19h50
estou na última grande cidade marroquina antes do saara. quem nunca passou por esta espera não tem a menor ideia do que é estar à beira da verdadeira vertigem, neste lugar onde o chão do mar se pressente, o coração bate desenfreadamente, se vêem claramente anjos no céu barrento e o deserto ainda oculto, fechado num cofre de sombras e montanhas. não sei se vou entrar no inferno se no grande e perfeito paraíso bíblico do temeroso deus do antigo testamento. nem consigo dormir nem estar acordado. por isso ando de um lado para o outro. as ruas são tão escuras que mal se vêem os pés. terei pés? quero comprar tabaco. o tabaco marroquino é o melhor tabaco do mundo. barato, cheira a mel e os cigarros queimam muito devagar. à porta de um café estão dois homens de mãos dada a beijar-se. um tem uma djelaba azul o outro preta. não param de se beijar. estranho que ambos tenham uma das mãos, a que não está oferecida ao outro, dentro dos bolsos. estão indiferentes a tudo. entro e peço um maço de cigarros, falo em francês mas o homem do café sabe logo que sou português. os marroquinos sabem sempre as nacionalidades das pessoas. é impossível enganá-los. também porque haveria eu de os querer enganar? só se fosse espanhol. eles detestam os espanhóis. mal contactam com um espanhol vem-lhes logo ceuta à garganta. vomitam-se. mas gostam dos portugueses. vá-se-lá entender estas coisas. dá-me o maço. gentil e prestativo. em cinco minutos de conversa conta-me mais coisas da história de portugal do que tudo o que ouvi na escola no pouco tempo em por lá andei. os marroquinos sabem tudo sobre a história de portugal. coisas que não se compreendem. quando saio os dois homens ainda se estão a beijar mas já trocaram as mãos de bolso. quando me cruzo com eles param de se beijar e perguntam-me se quero comprar uma pistola. é isso que eles têm dentro dos bolsos? digo que não, eles retomam o beijo. vou com passo rápido na direcção do hotel deixando um rasto de fumo com cheiro a mel. já estou mais calmo. se tivesse conseguido chegar ao hotel talvez tivesse conseguido adormecer e aguardar pela madrugada com serenidade, para a viagem, para partir. mas encontrei um brinco prateado, reluzente à luz de uma lua fosca muito alta, única fonte de iluminação. peguei no brinco e li em letras romanas a palavra fátima (seria o nome da filha de mohamed? seria a virgem dos pastorinhos? será a filha de mohamed e a virgem dos pastorinhos a mesma pessoa, quer dizer, o mesmo ser?) já não estou capaz de andar. vindo do brinco prateado uma suave melodia anuncia-me qualquer coisa que me paralisa. não acredito que isto me esteja a acontecer. logo ali. és tu, fátima – seja lá o que isso for ou quem «isso» for? da minha mão, vindo de um brinco de princesa: «heróis do mar/ nobre povo/ nação valente e imortal...»