segunda-feira, dezembro 12, 2005
tratado secreto da cidade # 7
# 7 – dia sétimo – 7 de dezembro – lisboa
8h00
o que me desespera é saber, ter a certeza, que para ti o assassínio do unicórnio não significou nada... foi um trabalho nosso. durante meses conquistámos a sua amizade, os dois. durante meses tomámos refeições com ele, os dois. montámos e cavalgámos montados sobre a sua garupa, os dois. sempre os dois. os dois e ele na floresta de cedros no centro da cidade. não sou melhor que tu. eu sei. ainda assim desespera-me... só nós sabíamos o segredo que possibilitava chamá-lo, a fórmula de encantamento que o traria até nós estivesse ele a que distância fosse. sabíamos e agimos sempre com uma intenção de morte. a cidade era o local perfeito onde tudo pode ser ocultado. junto à floresta, parávamos o carro, enxotávamos o enxame de prostitutas que logo se abeirava da viatura. bastava simular alguns jogos sexuais, uns beijos fingidos, para que elas se pusessem a andar praguejando todos os palavrões que lhes passavam pela cabeça: «paneleiros, picolhos, rotos, panascas.» mal acabava o circo e elas se desvaneciam no escuro saíamos para o frio, convictos, motivados. e era simples. tínhamos o feitiço, a flauta-que-tudo-encanta, a espada flamejante e excitava-nos acreditar que assassinando o unicórnio, assinando a inocência, estaríamos a libertar a humanidade da ignorância, da cegueira. e acreditámos em tudo, sem dúvidas. esse foi o nosso erro. agora já está. não há lágrima de fénix que possa sarar esta ferida. até o unicórnio acreditou em nós e nas nossas convicções. nós não o traímos ele sempre soube o que íamos fazer e assim nos revelou a única palavra que permitiria completar o trabalho: o seu nome secreto, consciente que ao fazê-lo nós poderíamos levar a cabo o santo sacrifício. arim. disse-nos. o meu nome é arim. cumprimos o combinado. parámos o automóvel na estrada junto à floresta, afastámos as prostitutas com a técnica habitual, entoamos a musica-que-não-se-ouve usando a flauta-que-tudo-encanta. dissemos as palavras-que-tudo-enfeitiçam. e tu, arim, ali estavas, ajoelhado à nossa frente com o corno apontado a terra, nossa única testemunha, numa vénia de morte e lua. depois, depois o silêncio das mãos segurando na espada que flameja penetrando-lhe o pescoço com fogo. amir fechou os olhos para nos mostrar o quanto nos agradecia. queria que acreditássemos que dormia em paz. e dormia. em paz! paz! o que me desespera é agora olhar-te e saber, ter a certeza, que para ti o assassínio de amir não significou nada... o que me desespera é saber que tu não existes. que fui só eu quem o matou. que tu és uma invenção minha para aguentar a solidão daquilo em que julgo acreditar. o que me desespera é ter de admitir-lo.
.......seria realmente amir o guardião da inocência do mundo e por isso o responsável pela ignorância e pela cegueira do mundo? tê-lo matado salvou a humanidade da obscuridade em que vive?
guiei até casa consciente de não ter estado à altura do ritual que pratiquei. apenas iluminado pela luz da lua, deitei-me vestido. senti ao meu lado um corpo quente entre os lençóis. com medo acendi um pequeno círio e voltei-me. mesmo ali, acabado de nascer, ainda envolto na placenta, um branco, bebé, unicórnio abria os olhos.
8h00
o que me desespera é saber, ter a certeza, que para ti o assassínio do unicórnio não significou nada... foi um trabalho nosso. durante meses conquistámos a sua amizade, os dois. durante meses tomámos refeições com ele, os dois. montámos e cavalgámos montados sobre a sua garupa, os dois. sempre os dois. os dois e ele na floresta de cedros no centro da cidade. não sou melhor que tu. eu sei. ainda assim desespera-me... só nós sabíamos o segredo que possibilitava chamá-lo, a fórmula de encantamento que o traria até nós estivesse ele a que distância fosse. sabíamos e agimos sempre com uma intenção de morte. a cidade era o local perfeito onde tudo pode ser ocultado. junto à floresta, parávamos o carro, enxotávamos o enxame de prostitutas que logo se abeirava da viatura. bastava simular alguns jogos sexuais, uns beijos fingidos, para que elas se pusessem a andar praguejando todos os palavrões que lhes passavam pela cabeça: «paneleiros, picolhos, rotos, panascas.» mal acabava o circo e elas se desvaneciam no escuro saíamos para o frio, convictos, motivados. e era simples. tínhamos o feitiço, a flauta-que-tudo-encanta, a espada flamejante e excitava-nos acreditar que assassinando o unicórnio, assinando a inocência, estaríamos a libertar a humanidade da ignorância, da cegueira. e acreditámos em tudo, sem dúvidas. esse foi o nosso erro. agora já está. não há lágrima de fénix que possa sarar esta ferida. até o unicórnio acreditou em nós e nas nossas convicções. nós não o traímos ele sempre soube o que íamos fazer e assim nos revelou a única palavra que permitiria completar o trabalho: o seu nome secreto, consciente que ao fazê-lo nós poderíamos levar a cabo o santo sacrifício. arim. disse-nos. o meu nome é arim. cumprimos o combinado. parámos o automóvel na estrada junto à floresta, afastámos as prostitutas com a técnica habitual, entoamos a musica-que-não-se-ouve usando a flauta-que-tudo-encanta. dissemos as palavras-que-tudo-enfeitiçam. e tu, arim, ali estavas, ajoelhado à nossa frente com o corno apontado a terra, nossa única testemunha, numa vénia de morte e lua. depois, depois o silêncio das mãos segurando na espada que flameja penetrando-lhe o pescoço com fogo. amir fechou os olhos para nos mostrar o quanto nos agradecia. queria que acreditássemos que dormia em paz. e dormia. em paz! paz! o que me desespera é agora olhar-te e saber, ter a certeza, que para ti o assassínio de amir não significou nada... o que me desespera é saber que tu não existes. que fui só eu quem o matou. que tu és uma invenção minha para aguentar a solidão daquilo em que julgo acreditar. o que me desespera é ter de admitir-lo.
.......seria realmente amir o guardião da inocência do mundo e por isso o responsável pela ignorância e pela cegueira do mundo? tê-lo matado salvou a humanidade da obscuridade em que vive?
guiei até casa consciente de não ter estado à altura do ritual que pratiquei. apenas iluminado pela luz da lua, deitei-me vestido. senti ao meu lado um corpo quente entre os lençóis. com medo acendi um pequeno círio e voltei-me. mesmo ali, acabado de nascer, ainda envolto na placenta, um branco, bebé, unicórnio abria os olhos.