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segunda-feira, dezembro 05, 2005

tratado secreto da cidade # 3 

# 3 – dia terceiro – 3 de dezembro - lisboa

8h20

está voltada para aquele armário há vinte um anos. não me ouve, nem vê. pelo menos dizem-me que ela não me ouve nem vê... não sei, é uma questão de opinião. mas eu falo. falo-lhe sempre. «falo-lhe» é maneira de dizer, falo-me diante dela. quando a visito costumo rodar-lhe a cadeira. faz-me impressão aquela coisa do armário. porque raio aquela sua família a põe sempre de face para o roupeiro? há uma janela mesmo ao lado. está bem que dá para uma lixeira imunda (deram-lhe o pior quarto da casa porque têm a certeza que ela não sente nada), nem se pode abrir a janela tal não é o fedor, mas que diabo, sempre há o céu. há sempre o céu e o céu modifica-se a cada instante... mesmo que ela não o pudesse ver talvez o céu a visse a ela. também não posso falar muito porque quando lhe rodo a cadeira nunca a rodo na direcção da janela. primeiro sento-me numa cadeira de napa azul que está lá sempre. não. primeiro rodo-a na direcção da cadeira de napa azul que está lá sempre, depois é que me sento, fixado no olhos dela por algum tempo. ela tem uns olhos muito castanhos... castanhos quê? não sei, muito castanhos, só isso. apesar de todos me dizerem que os olhos não lhe servem para nada, não consigo deixar de imaginar que uns olhos assim tão infinitos têm necessariamente que ver alguma coisa, uns olhos assim têm que poder olhar. talvez não da maneira que pensamos que os olhos vêem, mas um ver qualquer cuja mecânica física nos seja desconhecida. gosto de pensar assim. não por ela. por mim. faz-me bem pensar assim. além disso brilham. faz-me bem pensar assim. portanto, penso e pronto. acredito. gosto de os observar, castanhos, em silêncio. dez ou quinze minutos bastam. então, então começo a falar. digo-lhe tudo, falo-lhe de tudo. sou completamente transparente com ela. essa é a sua faculdade extraordinária, o seu dom, a sua natureza. só as coisas extraordinárias são naturais, ou, naturais são as coisas extraordinárias. ela é assim. tem esse poder. desbloqueia qualquer travão à nossa capacidade de expressão. na sua presença não há ocultação possível. nem isso surge como um desejo. o impulso é o contrário, sentimos uma imensa energia vómica de tudo revelar. é um dom. o dom daquela mulher. não lhe tenho amizade. quero-lhe bem. porque não haveria de querer? mas nunca criei com aquele ser qualquer espécie de laço afectivo especial. mal acaba a consulta e pago à recepcionista (acho que é tia dela ou faz-se passar por tal), saio para a rua e esqueço-a. só nas noites antes das consultas me volto a recordar dela – vou a quatro sessões por mês, uma por semana – tenho as marcações feitas com muita antecedência. já é um hábito. na noite anterior ao dia da consulta vem-me à memória que no dia seguinte a vou visitar, mas é um pensamento rápido. não fico a pensar nisso. à parte disso houve uma outra vez que recordei os olhos dela, mas também foram pensamentos fugazes. ah!, aconteceu uma vez, só uma vez (agora que falo nisto, talvez me recorde dela mais vezes do que supunha) sonhar com a mão que lhe treme ligeiramente, a esquerda. treme como se tivesse pequenos espasmos. devem mesmo ser micro-espasmos. no sonho aqueles movimentos, aparentemente descontrolados produziam uma melodia num daqueles pianos pequeninos, electrónicos, de brinquedo.
..............as consultas
..............duram uma hora.
rigorosamente uma hora. a mim chega-me. há onze anos, quando a visitei a primeira vez, as consultas eram muito baratas, agora como a procura é imensa os preços aumentaram disparatadamente e aquela gente que conduz o negócio explora os clientes sem piedade. o quarto dela é que está sempre igual. nunca houve uma mudança, pequena que fosse. sempre impecavelmente asseado, aliás como ela, que nunca tem uma única nódoa naquele roupão lilás que veste desde que a conheço. nunca teve outra roupa, um roupão sempre imaculadamente lavado. será não lhe compram um roupão novo por sovinice ou será que de alguma maneira, ela terá, por algum meio que não é revelado aos clientes, manifestado a sua vontade de vestir sempre aquele roupão. nem sei se só o usa nas consultas, nem sei como é que ela come ou vai à casa de banho. nada não sei nada dela nem nunca me passou pela cabeça perguntar o que fosse. simplesmente vou lá e deixo-me levar pelo dom. pelos olhos muito castanhos.

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