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terça-feira, dezembro 13, 2005

tratado secreto da cidade # 8 

# 8 – dia oitavo – 8 de dezembro - lisboa

6h10

gostava de ir a um alfaiate. daqueles que amavam o corpo dos clientes, conheciam e distinguiam cada um só pelo toque apurado daqueles dedos operários. não sei se ainda existem. é possível que sim, um ou outro, sobreviventes da invasão facínora dos «costureiros». (também fazem fatos por medida mas desprezam os clientes.) os alfaiates eram uma classe educada pelos sentidos, pela sensualidade, pelo verdadeiro amor. gostava de ter roupa assim, saída de um acto tão íntimo. era quase uma relação fiel-padre confessor. e era mesmo. tenho um casaco assim, de veludo, pertencia ao meu avô carlos. veludo preto. preto como nunca vi num tecido e bem feitas as contas já deve ter uns 60 anos. esse casaco foi gerado assim, nessa relação íntima e sensual entre o meu avô e o seu alfaiate. nos caixotes que guardam as centenas de fotografias tiradas pelo meu avô havia, talvez ainda para lá esteja, uma fotografia do sr. gonçalves. sei a toda a história dele: ainda não era velho, afogado em dívidas e incapaz de pagar as prestações aos agiotas, vestiu o fraque de um freguês, ainda alinhavado, todo a descoser-se, cheio de alfinetes de cabecinha, deitou-se na banheira e deu um tiro na boca. foi o meu avô quem lhe passou o atestado de óbito mentindo quanto à causa da morte, pois se viesse a verdade do suicídio ao de cima a viúva ficava sem a pensão de sobrevivência. escreveu no atestado que tinha morrido num acidente de caça. pobre sr. gonçalves que nunca caçou na vida. durante uns três ou quatro meses o meu avô ainda andou a pagar dividas aos agiotas para que eles não ameaçassem a desgraçada da viúva. às vezes ao jantar aquilo vinha-lhe à memória e dizia entredentes: «mas porque é que o raio do homem não me disse que precisava de dinheiro. maldito orgulho operário... operários e aristocratas, têm todos a doença do orgulho.» depois da morte do sr. gonçalves o meu avô nunca mais mandou fazer um fato. quando morreu a roupa dele – diziam as criadas – nem serviam para esfregar o chão. deixou-me intactos o casaco de veludo e um smoking feitos pelo sr. gonçalves. quando as manhãs estão frias, como a de hoje, imagino sempre a beleza que seria sentir nas costas uns dedos suaves desenhando incompreensíveis garatujas a giz sobre uma fazenda de lã.


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