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terça-feira, dezembro 06, 2005

tratado secreto da cidade # 4 

# 4 – dia quatro – 4 de dezembro – lisboa

7h55

«SE ME PROCURAREM ENCONTRAM-ME SEM DIFICULDADE
ESTOU EM TODA A PARTE»

todos os dias saio nesta estação. todos os dias, mal se abem as portas do comboio, dou de frente com esta frase pintada no muro da plataforma número 9. aquilo funciona como um alerta, uma sirene, dirigida a todos os que chegam, a todos os que partem, mas bem mais aos que chegam. ninguém fica indiferente à inscrição: carmim sobre um fundo azul-celeste. ainda mais isso, esse efeito estridente na retina. os que já estão prevenidos devem sentir algum medo porque baixam o olhar, evitando o contacto directo com a mensagem. é fácil constatar que a equipa da manutenção da gare cuida escrupulosamente do seu trabalho. os muros são pintados de fresco pelo menos uma vez por mês. há meses em que pintam duas, até três vezes algumas partes infestadas por grafitis ou por aquelas centenas de assinaturas de caracteres indecifráveis com que miríades de writers toscos enchem cada pedacinho virgem de parede. no entanto, aquela frase nunca foi apagada. nunca. é até fácil de comprovar isso, há quem pense que ela é refeita depois dos operários da manutenção a terem apagado, mas não, quem se der ao trabalho de a analisar de perto, verá que há escorrimentos de tinta, pequenos desastres, imperfeições que seriam impossíveis de refazer de umas vezes para as outras. nem faria qualquer sentido que o autor perdesse tempo a clonar os acidentes da pintura só visíveis a uma curtíssima distância. é óbvio que o que ali interessa é o que está escrito e as cores com que está pintado. definitivamente aquela mensagem só foi escrita uma vez. ontem, talvez hoje de manhã... ontem? bem, não sei bem, mas sim, ontem serve, reparei que alguém, uma outra pessoa que não o autor da primeira pintura, tinha acrescentado um ponto à frase, dando-a assim por concluída. selou-a, fechou-a. onde antes de lia: «SE ME PROCURAREM ENCONTRAM-ME SEM DIFICULDADE ESTOU EM TODA A PARTE», agora lê-se: «SE ME PROCURAREM ENCONTRAM-ME SEM DIFICULDADE ESTOU EM TODA A PARTE .». o primeiro autor tinha deixado a frase aberta, alguma coisa nos deixava suspeitar que a frase ainda podia ser acrescentada, agora, o segundo autor, premeditadamente, decepou essa possibilidade com aquele cruel . .tratam-se, portanto, de duas pessoas com motivações diferentes e que não se conhecem. como é que sei isto? como posso eu ter a certeza de que são duas pessoas e que não se conhecem? é simples, sou eu o autor da pintura da frase naquele muro frente à plataforma número 9. neste momento não consigo encontrar nenhuma explicação para o ter feito, aquela inscrição é tão misteriosa, para mim que a pintei, como para todos os que a vêem, apesar de me lembrar com exactidão da madrugada em que escrevi a frase naquele carmim. posso-vos garantir que não estava sob o efeito de álcool ou qualquer outra droga que não tabaco, mas não vos sei explicar mais nada. e sei que não fui eu que pintei o selo, o .. digo que não fui eu porque só posso dizer eu quando tenho consciência de um «eu» em mim. a memória de um «eu» em mim. e não tenho qualquer consciência ou memória de mim pintando aquele ponto. assim, não vos estou a mentir quando digo que não fui eu quem a fez, mesmo que, por hipótese, possa ter sido através das minhas mãos que o ponto surgiu. dentro de 45 minutos estarei a vestir o fato-macaco cor de laranja que ostenta o logotipo da empresa de manutenção da gare. dentro de 1 hora estarei a arrastar o carrinho com rodas onde transporto os baldes de tinta azul-celeste e as trinchas de vassoura com que, pelo menos uma vez por mês, às vezes mais amiúde, reponho a virgindade aos muros da gare. até à hora do almoço estarei a «limpar» grafitis. talvez algum dia consiga encontrar alguma explicação plausível para o mistério maior: o significado da inscrição e para o menor: a continuidade inalterada da pintura junto à plataforma 9.

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