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quinta-feira, dezembro 08, 2005

tratado secreto da cidade # 5 

# 5 – dia quinto – 5 de dezembro – lisboa

22h00

conheço-a há duas horas e aqui estou. sou eu, mesmo eu, na noite deste dia, sem amor sem nomes ditos. porquê? para quê? aqui estou, com o meu corpo aberto em antiquíssimas chagas, tão antigas que já ganharam musgo. a mulher despe-se. eu tento impedi-la. ela despe-se. eu tento fugir dali. ela deita-se. eu fico parado. na cidade está tudo programado. será que não se consegue alterar nada? tudo tão terrificamente planeado. robótico. antes ela tinha ido à casa de banho. previsível, saiu a cheirar a desodorizante. demasiado. para me agradar? eu quieto a fumar. só de pensar em tirar a gabardina me dá nojo. o sabor do cigarro dá-me nojo, mas é o que me salva da total imobilidade. a um canto daquele quarto sordidamente arrumado estão duas poltronas de cabedal já gasto, com aquelas «orelhas» onde se pode encostar a cabeça e deixar o sono flutuar leitura a dentro. as poltronas dos meus sonhos. a única vontade que sinto é a de me sentar numa delas e pedir àquela rapariga que também o fizesse. pedir-lhe que se desprogramasse daquela encenação insuportável. podia continuar nua. também eu me podia despir e ficarmos ali, os dois, sentados nas poltronas até que as cabeças nos tombassem nas «orelhas» de cabedal. ficaríamos face a face. corajosos, prontos para enfrentar os nossos olhos, acontecesse o que acontecesse. principalmente o maior de todos os desafios, o «poço da morte» dos desafios: o silêncio. assim, nus e corajosos, face a face nas poltronas. mas quando a olho, naquela cama sem história (mesmo para ela que se ali deita todos os dias [imagino] ), disponível. disponível porque sim, porque alguém lhe disse que esse o procedimento a ter nestas situações. «o que é que se passa? não vens?»
............não, não irei mas não te posso dizer assim.
«sabes o que é que eu gostava?» – «diz, não tenhas vergonha» – «não, não tenho vergonha, gostava que viesses, que nos sentássemos os dois naquelas poltronas e ficássemos assim, os dois, despidos, só a ver-nos, se tivéssemos frio ligava-se o aquecedor, talvez conversássemos, talvez...» foi uma frase curta e logo interrompida por uma aflição súbita dela. desatou a tapar-se com os lençóis e uma expressão de total desapontamento (pensei que era comigo que ela se sentia desapontada, mas afinal não, ela sentia-se desapontada com ela própria). pediu-me desculpa, e uma outra vez, e outra e outra e eu dizendo-lhe que era um disparate que não era nada disso, que não se tratava de culpa nem de culpados, que tinha sido só um pedido, uma ideia que me passara pela cabeça. nem me ouvia. «eu sei que não sou bonita, eu sei, eu sei... julguei que quisesses, desculpa, desculpa, desculpa desculpa»

..........devia ter dito apenas que não, que me ia embora

«não disse nada disso, tu és bonita, que disparate tudo isto, só sugeri que viéssemos os dois para as poltronas e...»
? mas eu não te atraio
? sim, atrais-me, mas pensei que pudéssemos...
? mas...
sem querer toquei com o pé numa coisa escondida entre os pelos altos de um tapete a meio do quarto, um relógio partido, com os ponteiros parados nas 22h00, peguei-lhe instintivamente e meti-o no bolso. ela nem reparou de tão lavada em lágrimas que estava. olhei-a e tentei uma última vez. «olha, ainda só são 10h da noite, temos tempo, porque não experimentas comigo as poltronas?» nem me respondeu.

isto tudo está a ser uma violência enorme para ti não é? não estás programada para nada disto. não sabes, é-te impossível lidar com esta situação.
? desculpa-me a mim.
senti-me feliz por não ter sequer tirado a gabardina. saí. na rua a cidade pareceu-me muito pequena, fui andando até ao cais onde um dia esteve ancorado um navio – memória de um tempo excepcionalmente doce – agora vazio, de pessoa, de pessoas de barcos, de automóveis, só rio. tejo-quase-mar. tirei o relógio do bolso. 22h00. ainda temos temp

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