<$BlogRSDUrl$>

quinta-feira, dezembro 01, 2005

tratado secreto da cidade # 2 

# 2 – segundo dia – 2 de dezembro de 2005 – lisboa

21h45

os cães vadios, os cães-livres, eram o amuleto da cidade. durante quase dois mil anos os cães vadios absorveram o mal reflectindo o bem. o homem só é bom na presença dos cães-livres e enquanto existiram cães vadios na cidade existiu o bem nos cidadãos. a cidadania está directamente ligada com a presença de cães-livres na cidade. subtilmente, os cães vadios, que eram maioritários entre os das sua espécie, foram sendo abatidos ao mesmo tempo que se estimulava a adopção de cães domésticos, cativos. ora, os cães cativos têm o efeito exactamente oposto sobre o homem. domésticos, cães, são a expressão máxima da submissão. na sua relação com os carcereiros homens (antropóides?), o exemplo claro do exercício do poder, da força de um sobre a fraqueza doutro. e pelo exemplo, se iniciou a exploração do homem pelo homem, é simples. com o abatimento dos cães-livres, com a destruição dessa corporação fraterna, eliminou-se a última grande comunidade de seres sacerdotalmente dedicados à salvação do bom, do verdadeiro e do belo. com a perseguição e exterminação brutal desta corporação, perderam-se os segredos milenares da alquimia do amor e a cidade ficou à mercê do mal. do mal como energia, porque o mal é impersonalificável. o mal é demasiado demoníaco para encarnar. é por isso que a figura do diabo sempre foi uma figuração do bem, lúcifer – lucifèru, o portador da luz, cão luciferário – o que leva a lanterna numa procissão indicando o caminho, a besta capaz de enfrentar as mais sinistras provações. não sei se fraternidade angélica dos cães-livres continua a existir de forma críptica. se existe, não é uma comunidade suficientemente forte e actuante, e a existir apenas devem agir através de rituais e símbolos, perderam toda a operatividade. os ratos afogaram a cidade com os seus olhos vermelhos. submergiram casas, pessoas, ruas, na lama dos seus pensamentos. emergente, esta burguesia semi-oculta, domina. rápida e implacavelmente. um rato não precisa de quase nada para sobreviver. alimenta-se de quase tudo. até madeira lhes fornece proteínas. é essa a força dos ratos, eles não precisam de nada e por isso podem querer tudo. se saímos à rua pela alva, é raro não nos depararmos com aqueles magotes de gente com ar de regresso (vindos não se sabe de onde, indo não se sabe para onde – talvez tenham casas e famílias...), desfasados de qualquer tempo cronológico, desfasados do tempo solar, do ritmo solar, se lhes fosse perguntado, dificilmente saberiam se era dia ou noite. olhamo-los, e vemos que caminham comandados à distância. programadamente. alarvam por controlo remoto. quando nos cruzamos com esses magotes, não é difícil sentir o odor fétido a mijo de rato exalando-lhes das bocas misturado com o cheiro a cerveja. aliás, todas as ruas já tresandam a esse cheiro. cada esquina está laboriosamente marcada por aquele vapor alucinogénio e inebriados pelo odor daquela substância, os homens estão já capazes de tudo. li uma vez que quando se vê um rato há oitenta ocultos em seu redor. devem haver muitos mais. muitos, muitos mais, escondidos aos milhares, por cada um que se deixa ver. e eles deixam-se ver. só um de cada vez. para que saibamos da sua presença, do seu domínio. claro que continuam a existir gatos. mas é pura ilusão pensar que os gatos nos protegem dos ratos. desde que no antigo egipto foram consagrados entes superiores de um outro universo, de deusas, que os gatos não se envolvem em assuntos da humanidade. os gatos movem-se no estrito território feminino de um plano invisível para nós –, extraterreno, mesmo extrauniversal, desde o egipto que os gatos não se metem com os homens, muito menos nos seus problemas.

This page is powered by Blogger. Isn't yours?