quarta-feira, novembro 30, 2005
tratado secreto da cidade # 1
# 1 – primeiro dia – 1 de dezembro de 2005 – lisboa
7h00
ogres. elfos. basiliscos. bancários. taxistas. esquilos. caminha-se. caminha-se. caminha-se. os monstros não reconhecem ninguém. o truque é nunca olhar para trás. nem para a frente. ver através das pálpebras cerradas. como se o corpo, o nosso, estivesse sob o manto da invisibilidade dos feiticeiros. vermelho. verde. amarelo. verde. amarelo. vermelho. vermelho? verde? amarelo? é tudo a mesma coisa? tenho a certeza de que os semáforos estão a emitir permanentemente um sinal em código. um código tricolor. uma linguagem cifrada. são milhares e milhares; biliões de semáforos emitindo esses toques de um morse cromático mesmo à frente dos nossos olhos. talvez, de alguma maneira, estes sinais estejam relacionados com os movimentos combinados, coreografados, de travar e arrancar dos automóveis. talvez, de alguma maneira, estes sinais estejam relacionados com os movimentos coordenados, coreografados, de parar e andar dos peões. talvez tudo. talvez qualquer coisa. tenho procurado inverter ou subverter esta maquinação. arranco no vermelho. travo-me no verde. ignoro o amarelo. até agora a única coisa que notei (até registei os dias e as horas) –, notei que quando tento subverter o código não tenho sonhos durante a noite. não tendo sonhos não consigo ascender a um plano mais alto ou superior de consciência. eu só sou eu durante os sonhos. durante a vigília desço ao que há de mais reles em mim. mas se esta estrutura codificada interfere nos sonhos ao ponto de os anular só porque inverto a resposta esperada ao estímulo das cores, posso daí concluir que também essa parte de mim, essa parte íntima e perfeita de mim que até agora julgava descondicionada, liberta, não só é controlada como é cativa do código tricolor. fica a dúvida. ficará sempre a dúvida. quem emite estes sinais? para quê? quem os recebe capaz de os descodificar? haverá algum país à superfície da crosta terrestre que não tenha semáforos? de oriente a ocidente, um único, haverá algum, que não tenha semáforos?
........................e automóveis a arrancar e a travar?
........................e peões a parar e a avançar?
será que em dias como o de hoje, em que o nevoeiro nos cobre como uma teia de branco-titanium, podemos escapar... ficar quase, quase, quase de fora a observar com rigor esta secreta combinação de poder vermelho-amarelo-verde? se um de nós escapar, só um de nós, alguém notaria? alguém se preocuparia em o caçar? há registo da nossa existência? nada é o que parece na cidade. ou então é tudo demasiado parecido com a verdade que nem suspeitamos que temos a verdade ao nosso alcance. pressinto que se enlouquecermos escaparemos sãos a toda esta imensa incompreensão. ou a loucura ou o amor. os amantes estão sempre a salvo porque se erguem como deuses à mais alta parcela da catedral humana, ao zénite, onde habitam em santuário.
7h00
ogres. elfos. basiliscos. bancários. taxistas. esquilos. caminha-se. caminha-se. caminha-se. os monstros não reconhecem ninguém. o truque é nunca olhar para trás. nem para a frente. ver através das pálpebras cerradas. como se o corpo, o nosso, estivesse sob o manto da invisibilidade dos feiticeiros. vermelho. verde. amarelo. verde. amarelo. vermelho. vermelho? verde? amarelo? é tudo a mesma coisa? tenho a certeza de que os semáforos estão a emitir permanentemente um sinal em código. um código tricolor. uma linguagem cifrada. são milhares e milhares; biliões de semáforos emitindo esses toques de um morse cromático mesmo à frente dos nossos olhos. talvez, de alguma maneira, estes sinais estejam relacionados com os movimentos combinados, coreografados, de travar e arrancar dos automóveis. talvez, de alguma maneira, estes sinais estejam relacionados com os movimentos coordenados, coreografados, de parar e andar dos peões. talvez tudo. talvez qualquer coisa. tenho procurado inverter ou subverter esta maquinação. arranco no vermelho. travo-me no verde. ignoro o amarelo. até agora a única coisa que notei (até registei os dias e as horas) –, notei que quando tento subverter o código não tenho sonhos durante a noite. não tendo sonhos não consigo ascender a um plano mais alto ou superior de consciência. eu só sou eu durante os sonhos. durante a vigília desço ao que há de mais reles em mim. mas se esta estrutura codificada interfere nos sonhos ao ponto de os anular só porque inverto a resposta esperada ao estímulo das cores, posso daí concluir que também essa parte de mim, essa parte íntima e perfeita de mim que até agora julgava descondicionada, liberta, não só é controlada como é cativa do código tricolor. fica a dúvida. ficará sempre a dúvida. quem emite estes sinais? para quê? quem os recebe capaz de os descodificar? haverá algum país à superfície da crosta terrestre que não tenha semáforos? de oriente a ocidente, um único, haverá algum, que não tenha semáforos?
........................e automóveis a arrancar e a travar?
........................e peões a parar e a avançar?
será que em dias como o de hoje, em que o nevoeiro nos cobre como uma teia de branco-titanium, podemos escapar... ficar quase, quase, quase de fora a observar com rigor esta secreta combinação de poder vermelho-amarelo-verde? se um de nós escapar, só um de nós, alguém notaria? alguém se preocuparia em o caçar? há registo da nossa existência? nada é o que parece na cidade. ou então é tudo demasiado parecido com a verdade que nem suspeitamos que temos a verdade ao nosso alcance. pressinto que se enlouquecermos escaparemos sãos a toda esta imensa incompreensão. ou a loucura ou o amor. os amantes estão sempre a salvo porque se erguem como deuses à mais alta parcela da catedral humana, ao zénite, onde habitam em santuário.
terça-feira, novembro 29, 2005
tratado secreto da medicina # 40
não voltarei a tocar neste assunto
no momento extremo do poema a tinta
espalhar-se-á no papel e no papel espalhar-se-á
a dor do poema como um leite seminal sobre
um amor em ferida – cada lugar antigo cada
beijo terá o seu merecido descanso
há-de nascer uma árvore nesta mesa há-de
refrutificar a romã que em mim ainda é o amor
o desejo e a cura
o tratado secreto da medicina
no momento extremo do poema a tinta
espalhar-se-á no papel e no papel espalhar-se-á
a dor do poema como um leite seminal sobre
um amor em ferida – cada lugar antigo cada
beijo terá o seu merecido descanso
há-de nascer uma árvore nesta mesa há-de
refrutificar a romã que em mim ainda é o amor
o desejo e a cura
o tratado secreto da medicina
tratado secreto da medicina # 39
vinte e uma horas e dezasseis minutos – lisboa
o vento traz do rio a musica de uma sirene
naval – ?algum barco que atraca – ?que parte –
o som propaga-se e entra-me no crânio com
uma brutalidade bem-vinda
em mim a brutalidade é sempre bem-vinda – a
brutalidade não exige resposta – no extremo
cansaço desta noite qualquer acto de doçura
exigiria uma resposta – uma impossível
resposta – no rio o barco que atraca ou solta
amarras desconhece-me
toda a cidade ignora a minha existência
extenuada – no extremo cansaço desta noite
agradeço a felicidade
o vento traz do rio a musica de uma sirene
naval – ?algum barco que atraca – ?que parte –
o som propaga-se e entra-me no crânio com
uma brutalidade bem-vinda
em mim a brutalidade é sempre bem-vinda – a
brutalidade não exige resposta – no extremo
cansaço desta noite qualquer acto de doçura
exigiria uma resposta – uma impossível
resposta – no rio o barco que atraca ou solta
amarras desconhece-me
toda a cidade ignora a minha existência
extenuada – no extremo cansaço desta noite
agradeço a felicidade
tratado secreto da medicina # 38
um fio de estrelas incolores
uma rede de estrelas incolores – um nó de
estrelas incolores – alojou-se-me na garganta e
absorve
sorve
bebe
apodera-se
das últimas inspirações
e o ar que falta veda-me as palavras – tento
puxar o fio achar uma ponta mas as estrelas
prendem-se nas pequenas veias nos vasos na
flora vocal – deixo-me estar
por fim
absorvido por aquele brilho extraterreno que
brota da impossibilidade natural de respirar
uma rede de estrelas incolores – um nó de
estrelas incolores – alojou-se-me na garganta e
absorve
sorve
bebe
apodera-se
das últimas inspirações
e o ar que falta veda-me as palavras – tento
puxar o fio achar uma ponta mas as estrelas
prendem-se nas pequenas veias nos vasos na
flora vocal – deixo-me estar
por fim
absorvido por aquele brilho extraterreno que
brota da impossibilidade natural de respirar
LEITURA OBRIGATÓRIA...
LEITURA OBRIGATÓRIA...
tratado secreto da medicina # 37
um dia estivemos unidos por uma estranha película
de seda – envoltos numa fina película
de seda – estranha película de fina seda
nesse dia rasgámos a pele e marcámos com os
dentes o território de um amor profundo
iniciámos o labor dos operários-amantes
os diamantes
com o tempo a seda desfez-se e a pele fez-se
numa estranha película – uma estranha fina
película de poeiras – ficou a marca dos
dentes pirogravada na fina película de ar que
ainda nos envolve
de seda – envoltos numa fina película
de seda – estranha película de fina seda
nesse dia rasgámos a pele e marcámos com os
dentes o território de um amor profundo
iniciámos o labor dos operários-amantes
os diamantes
com o tempo a seda desfez-se e a pele fez-se
numa estranha película – uma estranha fina
película de poeiras – ficou a marca dos
dentes pirogravada na fina película de ar que
ainda nos envolve
segunda-feira, novembro 28, 2005
tratado secreto da medicina # 36
em memória da actriz isabel de castro
enquanto as agulhas se cravam no dorso
vamos comer-nos
?acupunctura ?línguapêndulo é o mar interno
que se agita nas vestes dos líquidos
nas veias há uma luz que verte dos ossos
e cartilagens com que o coração ama
e
e
entre o espaço que ocupamos e as velas que
acendemos há um grito final a cura que se
aproxima o verdadeiro suspiro dos anjos
infiéis o sopro da felicidade incorpórea o amor
que se dissolve soltando um suor de lava um
olhar de esquilo – minha última palavra
realidade de um navio que parte dum rio entre
a lama de uma nova vida e a energia perfeita
para uma morte tranquila
entre a dor e o tratamento
tratado secreto da medicina # 35
?e tu porque choras
domingo, novembro 27, 2005
tratado secreto da medicina # 34
sobrou tempo durei demais
a queda foi ruidosa voaram penas e sapatos
pequenos objectos viscerais espalharam-se
rumores houve olhares de soslaio
desmaiei passaram carros choveu – a rua/
a rua deixou de ter fundo – tudo desenhado no
plano numa consciência cúbica fotomontada e
no ventre cordas de violino
a queda foi ruidosa voaram penas e sapatos
pequenos objectos viscerais espalharam-se
rumores houve olhares de soslaio
desmaiei passaram carros choveu – a rua/
a rua deixou de ter fundo – tudo desenhado no
plano numa consciência cúbica fotomontada e
no ventre cordas de violino
sábado, novembro 26, 2005
tratado secreto da medicina # 33
separei-me do meu corpo durante uns
segundos
os suficientes
para me observar num plural de agonias
ouvir-me
até
como um antiquíssimo pulsar
um tambor - ? coração
? andor – é indiferente o importante é que me
reconheci vi-me e era mesmo eu
eu eu
eu o que sempre fui cara mente pés mãos olhos
vidas e vidas para formar este agregado
molecular – vi-me e era papel
segundos
os suficientes
para me observar num plural de agonias
ouvir-me
até
como um antiquíssimo pulsar
um tambor - ? coração
? andor – é indiferente o importante é que me
reconheci vi-me e era mesmo eu
eu eu
eu o que sempre fui cara mente pés mãos olhos
vidas e vidas para formar este agregado
molecular – vi-me e era papel
sexta-feira, novembro 25, 2005
tratado secreto da medicina # 32
impõe as tuas mãos sobre a minha cabeça
fá-lo outra vez – uma última
vez com os teus dedos fortes as tuas mãos de
falanges curtas de organista abre a imensa paz
dos teus dedos contra o topo craniano do meu
eixo de equilíbrio – entrego-te a verticalidade
plena do meu ser afogado
para que me resgates e transcendas o tempo e
as viagens os elementos e os planetas
uma
última
vez
?fazes isso por mim – meu tigre chinês
fá-lo outra vez – uma última
vez com os teus dedos fortes as tuas mãos de
falanges curtas de organista abre a imensa paz
dos teus dedos contra o topo craniano do meu
eixo de equilíbrio – entrego-te a verticalidade
plena do meu ser afogado
para que me resgates e transcendas o tempo e
as viagens os elementos e os planetas
uma
última
vez
?fazes isso por mim – meu tigre chinês
quinta-feira, novembro 24, 2005
tratado secreto da medicina # 31
?qual foi o rei que deu ordem para que
retirassem todos os espelhos dos seus palácios
– há uma história assim
um conto infantil ou uma canção – e um dia o
rei
que
não
suportava
a sua
imagem
viu-a reflectida num lago
passado o primeiro assombro serenou
viu que afinal não era assim tão feio
feio como pensava
feio como lhe diziam
feio como ele sentia que era feio – naquela
imagem do lago
não era feio
e passado o primeiro assombro serenou – há
lagos assim
imensamente bondosos capazes de mentir por
compaixão capazes de transformar corpos
reflectidos em imagens de infinita beleza e
flores de amarelas
retirassem todos os espelhos dos seus palácios
– há uma história assim
um conto infantil ou uma canção – e um dia o
rei
que
não
suportava
a sua
imagem
viu-a reflectida num lago
passado o primeiro assombro serenou
viu que afinal não era assim tão feio
feio como pensava
feio como lhe diziam
feio como ele sentia que era feio – naquela
imagem do lago
não era feio
e passado o primeiro assombro serenou – há
lagos assim
imensamente bondosos capazes de mentir por
compaixão capazes de transformar corpos
reflectidos em imagens de infinita beleza e
flores de amarelas
quarta-feira, novembro 23, 2005
tratado secreto da medicina # 30
sinto as costas abrirem-se a um medo
desconhecido a uma poderosa voz de árvore –
assim
perdido numa floresta numa noite sem lua
e há uma mão que entra por essa fenda e me
toca o coração e perfura os ossos os átomos as
memórias as silabas desfeitas
«é tudo um sonho»
é o que me dizem «e um dia acordas e a
revelação será plena e terás o entendimento
total de tudo do todo do visível do invisível»
é o que me dizem
e pelas costas um medo a abrir-me
uma poderosa árvore escura sem luar soltando
rugidos dentro de mim
assim
perdido na floresta na noite na lua
desconhecido a uma poderosa voz de árvore –
assim
perdido numa floresta numa noite sem lua
e há uma mão que entra por essa fenda e me
toca o coração e perfura os ossos os átomos as
memórias as silabas desfeitas
«é tudo um sonho»
é o que me dizem «e um dia acordas e a
revelação será plena e terás o entendimento
total de tudo do todo do visível do invisível»
é o que me dizem
e pelas costas um medo a abrir-me
uma poderosa árvore escura sem luar soltando
rugidos dentro de mim
assim
perdido na floresta na noite na lua
terça-feira, novembro 22, 2005
tratado secreto da medicina # 29
a doçura tornou-se uma armadilha
uma terrível boca demoníaca – a doçura de um
dia dá-nos a esperança de uma rosa
um sopro de roseira
e depois – mal o corpo pousa e as pálpebras se
entregam ao húmus – fria como uma corrente
de jaula – rebenta de novo a tortura dos dias
inteiros: ovulações de pequenas tempestades
em relâmpago
ou chicotes aproveitando o sono justo do amor
que se bebeu
durante a ilusão de uma terna fracção de paz
uma terrível boca demoníaca – a doçura de um
dia dá-nos a esperança de uma rosa
um sopro de roseira
e depois – mal o corpo pousa e as pálpebras se
entregam ao húmus – fria como uma corrente
de jaula – rebenta de novo a tortura dos dias
inteiros: ovulações de pequenas tempestades
em relâmpago
ou chicotes aproveitando o sono justo do amor
que se bebeu
durante a ilusão de uma terna fracção de paz
segunda-feira, novembro 21, 2005
OBRIGATÓRIO VER...
tratado secreto da medicina # 28
«se um dia o meu peito adoecer de espera
nada terei a chorar» – disse pousando
a cabeça sobre a almofada lilás do sofá –
ouvi-o em silêncio – ?que
dizer perante a grande lucidez do fim – abri a
janela – ouvi-o adormecer e lá fora os
automóveis sobre carris
como eléctricos de lisboa (carris de ferro) – :
afinal para que lhes servem as rodas soltas
pensei
.......– e
no sofá – o gato continuava dormindo com
aquele ar de serpente feliz – pressenti
o bem que o animal tinha feito a si próprio
finalmente
ao fim de tantos anos de vida obrigatória
tinha conseguido desabafar
se um dia o meu peito...
nada terei a chorar» – disse pousando
a cabeça sobre a almofada lilás do sofá –
ouvi-o em silêncio – ?que
dizer perante a grande lucidez do fim – abri a
janela – ouvi-o adormecer e lá fora os
automóveis sobre carris
como eléctricos de lisboa (carris de ferro) – :
afinal para que lhes servem as rodas soltas
pensei
.......– e
no sofá – o gato continuava dormindo com
aquele ar de serpente feliz – pressenti
o bem que o animal tinha feito a si próprio
finalmente
ao fim de tantos anos de vida obrigatória
tinha conseguido desabafar
se um dia o meu peito...
tratado secreto da medicina # 27
invocando a voz de lhasa de sela,
à ná
se a mente parasse no mais profundo
alto
lá onde o som se oferenda como um lobo à lua
como a lua aos dentes
de uma espingarda –, anjos e homens re
unir-se-iam num último conclave de
salvação amorosa
se o coração se abrisse no mais alto plano
profundo – lá onde o som se oferenda como a
pele às mãos dos últimos anjos e homens
amorosamente reunidos –, uma voz re
acenderia – imenso feminino – toda a salvação
a eternidade regeneradora
dos corpos
domingo, novembro 20, 2005
no «Notas Sobre Livros...»
quinta-feira, novembro 17, 2005
Shakyamuni Mantra
tratado secreto da medicina # 26
quando dantes caminhava perdia-me em
grandes e serenos deslumbramentos
reparava nos rostos e nas vozes dos amimais
no olhar secreto dos deuses escondidos entre
as folhas das videiras
até que um dia
ou deixei de caminhar
ou deixei de saber ver e sentir os passos e o
chão
moldando-me a palma dos pés
os caminhos tornaram-se indiferentes ao meu
coração
conheci então o desapontamento máximo das
coisas e nunca mais vi seres de rosto feliz
subindo árvores ou contando histórias à minha
passagem
e os deslumbramentos do passado são agora
fumo – cigarros a arder – pouco mais
um ou outro beijo – talvez
grandes e serenos deslumbramentos
reparava nos rostos e nas vozes dos amimais
no olhar secreto dos deuses escondidos entre
as folhas das videiras
até que um dia
ou deixei de caminhar
ou deixei de saber ver e sentir os passos e o
chão
moldando-me a palma dos pés
os caminhos tornaram-se indiferentes ao meu
coração
conheci então o desapontamento máximo das
coisas e nunca mais vi seres de rosto feliz
subindo árvores ou contando histórias à minha
passagem
e os deslumbramentos do passado são agora
fumo – cigarros a arder – pouco mais
um ou outro beijo – talvez
quarta-feira, novembro 16, 2005
tratado secreto da medicina # 25
a lua desceu isolada sobre a parcela
de terra onde uma criança enterrada se fez
partícula nesta cidade pesada
assente no meu peito
concentrada numa flor – explode a crua
sombra – lápide lunar
derramando o suor de um cristo
que nunca veio
de terra onde uma criança enterrada se fez
partícula nesta cidade pesada
assente no meu peito
concentrada numa flor – explode a crua
sombra – lápide lunar
derramando o suor de um cristo
que nunca veio
terça-feira, novembro 15, 2005
tratado secreto da medicina # 24
o tempo não passa o tempo é luz como são
verdes as árvores ou brancos os dentes
ou transparente
a água
quando mergulhamos na sua profunda voz
o tempo é um hálito um halo um fogo-fátuo
– o tempo é uma aparição indizível que
embaça os olhos com lágrimas odoríferas
pedras preciosas e fugas de bach
o tempo não passa o sol não nasce
não se põe
o sol existe sempre nascido e sempre posto – o
tempo é luz como as árvores são verdes ou
brancos os dentes
reluzindo
na absoluta escuridão
verdes as árvores ou brancos os dentes
ou transparente
a água
quando mergulhamos na sua profunda voz
o tempo é um hálito um halo um fogo-fátuo
– o tempo é uma aparição indizível que
embaça os olhos com lágrimas odoríferas
pedras preciosas e fugas de bach
o tempo não passa o sol não nasce
não se põe
o sol existe sempre nascido e sempre posto – o
tempo é luz como as árvores são verdes ou
brancos os dentes
reluzindo
na absoluta escuridão
segunda-feira, novembro 14, 2005
tratado secreto da paisagem # 23
o importante é respirar
usar as mãos
ocupar com o coração o lugar secreto do
cérebro que reside nos dedos e
nos dedos ampliar a visão das coisas
imensamente pequenas e
esquecer as imensamente grandes – ou o
contrário
tanto faz – o impossível é viver
preso entre o amor e o desamor
como se as mãos e o corpo aguentassem tudo e
tudo fizesse parte do corpo e o corpo fizesse
parte de tudo
usar as mãos
ocupar com o coração o lugar secreto do
cérebro que reside nos dedos e
nos dedos ampliar a visão das coisas
imensamente pequenas e
esquecer as imensamente grandes – ou o
contrário
tanto faz – o impossível é viver
preso entre o amor e o desamor
como se as mãos e o corpo aguentassem tudo e
tudo fizesse parte do corpo e o corpo fizesse
parte de tudo
quinta-feira, novembro 10, 2005
tratado secreto da medicina # 22
à actriz manuela de freitas
e pensa-se no corpo como uma pedra
que há-de durar e perdurar para além da alma
que o habita – e sente-se o corpo perdurar
além das estrelas e dos céus atrás delas
das costelas dos pulmões dos órgãos perfeitos
que compõem o ouvido –
assim há-de o teu corpo perdurar na voz e na
pele como uma pedra
de infinita leveza – só a alma é efémera – no
teu corpo a força e a rosa que choramos
e pensa-se no corpo como uma pedra
que há-de durar e perdurar para além da alma
que o habita – e sente-se o corpo perdurar
além das estrelas e dos céus atrás delas
das costelas dos pulmões dos órgãos perfeitos
que compõem o ouvido –
assim há-de o teu corpo perdurar na voz e na
pele como uma pedra
de infinita leveza – só a alma é efémera – no
teu corpo a força e a rosa que choramos
quarta-feira, novembro 09, 2005
tratado secreto da medicina # 21
talvez nunca tenha entendido a minha maneira
de amar ou
talvez nunca
tenha tido uma maneira de amar ou uma única
maneira de amar – talvez nunca
tenha sabido o amor de uma maneira – a forma
e a proporção
a geometria – mas estou certo que amei
sempre tarde demais ou num cedo incerto de
tanta impossibilidade de me encontrar amando
seja o que for
o amor
de amar ou
talvez nunca
tenha tido uma maneira de amar ou uma única
maneira de amar – talvez nunca
tenha sabido o amor de uma maneira – a forma
e a proporção
a geometria – mas estou certo que amei
sempre tarde demais ou num cedo incerto de
tanta impossibilidade de me encontrar amando
seja o que for
o amor
terça-feira, novembro 08, 2005
tratado secreto da medicina # 20
esta imensa fenda de distância e desistência
que nos separa dos astros grita
pela voz dos pássaros e das flores nos campos
e nas casas
da grande cidade engolida
eis mil setecentos e noventa cinco numa
respiração assombrada pelo bafo de uma
longínqua estrela –
nas extremidades dos dedos que habitamos:
as ruínas os muros e [santo dos santos] em lisboa –
hoje
estranhamente
agitada – novembro
que nos separa dos astros grita
pela voz dos pássaros e das flores nos campos
e nas casas
da grande cidade engolida
eis mil setecentos e noventa cinco numa
respiração assombrada pelo bafo de uma
longínqua estrela –
nas extremidades dos dedos que habitamos:
as ruínas os muros e [santo dos santos] em lisboa –
hoje
estranhamente
agitada – novembro
tratado secreto da medicina # 19
trago no peito – desde a raiz – a força das
visões profundas – a sumptuosidade
dos insectos e como uma queda de água nas
têmporas a demência a completa obscuridade
do silêncio – o mel
agarro-me com ferocidade a uma cama que se
molda ao meu corpo que abandonei
e as paredes estremecem
redondas
escoando na largura das costas um odor a
mármore
a prisão e leite – a dor é o dom mais puro das
rosas – essas que trago no peito – desde a raiz
como uma força – visão profunda da nudez
da sumptuosidade dos insectos
visões profundas – a sumptuosidade
dos insectos e como uma queda de água nas
têmporas a demência a completa obscuridade
do silêncio – o mel
agarro-me com ferocidade a uma cama que se
molda ao meu corpo que abandonei
e as paredes estremecem
redondas
escoando na largura das costas um odor a
mármore
a prisão e leite – a dor é o dom mais puro das
rosas – essas que trago no peito – desde a raiz
como uma força – visão profunda da nudez
da sumptuosidade dos insectos
segunda-feira, novembro 07, 2005
tratado secreto da medicina # 18
ao antónio cândido franco
lancei-me num profundo som de seda amarela
num entorpecimento arterial
mais palavras não – só seda solar
alargo os braços e estico-os até os desarticular
até a pele se sentir livre para ti (já sem os
detestáveis sonhos da infância
– as ofensivas desleais da esperança) a minha
pele é tua –: lancei-me num profundo som
de seda amarela
estou disponível para te abraçar para te
reencontrar
sem palavras sem pele sem a agressiva
organização dos ossos
só
para respirar
lancei-me num profundo som de seda amarela
num entorpecimento arterial
mais palavras não – só seda solar
alargo os braços e estico-os até os desarticular
até a pele se sentir livre para ti (já sem os
detestáveis sonhos da infância
– as ofensivas desleais da esperança) a minha
pele é tua –: lancei-me num profundo som
de seda amarela
estou disponível para te abraçar para te
reencontrar
sem palavras sem pele sem a agressiva
organização dos ossos
só
para respirar
tratado secreto da medicina # 17
para a lina no dia da sua morte
todos sabíamos como a morte era pequena
para ti e a vida um imenso florescimento de
luz – uma contínua palavra
neve e estátuas flutuantes – músicas
de embalar
tantas conversas depois
neste dia de mercúrio e terra – embalada nos
mais puros lábios
bela adormecida pelos mais doces dedos
reconheceste a terra pura de um outro lugar
mais perto
desenhaste o teu nome na seda deste novembro
recém-nascido
tantas conversas depois
?terás morrido ouvindo o teu mais
precioso mantra? – creio:
no alfabeto
que na lua se inscreve
lá estará sempre escrito para o teu ouvido
as sussurradas sílabas com que partiste – na
lua – para ti – mãe
todos sabíamos como a morte era pequena
para ti e a vida um imenso florescimento de
luz – uma contínua palavra
neve e estátuas flutuantes – músicas
de embalar
tantas conversas depois
neste dia de mercúrio e terra – embalada nos
mais puros lábios
bela adormecida pelos mais doces dedos
reconheceste a terra pura de um outro lugar
mais perto
desenhaste o teu nome na seda deste novembro
recém-nascido
tantas conversas depois
?terás morrido ouvindo o teu mais
precioso mantra? – creio:
no alfabeto
que na lua se inscreve
lá estará sempre escrito para o teu ouvido
as sussurradas sílabas com que partiste – na
lua – para ti – mãe
quinta-feira, novembro 03, 2005
tratado secreto da medicina # 16
que as noites se abram e fechem como as
pétalas das pequenas rosas de inverno e o calor
aconteça nas oblíquas gotas de chuva
?será este o derradeiro natal – será o primeiro
antes da queda? ?da última? – sei que os meus
pés se aproximam do fim
tenho os olhos abertos como gigantes claves
de sol numa manuscrita partitura de mozart
que as noites se abram
e fechem como os girassóis flutuantes da índia
e
que este natal se não for a derradeira
celebração do meu aniversário
seja a primeira primavera de muitas vidas
um cálice aberto às lágrimas de todos os
pequenos deuses perdidos no espaço – ou que
esta primavera seja o primeiro natal e nas
rosas o amor cresça
feroz inteligente como um dente de águia
e pela última vez te possa ter
dentro
pétalas das pequenas rosas de inverno e o calor
aconteça nas oblíquas gotas de chuva
?será este o derradeiro natal – será o primeiro
antes da queda? ?da última? – sei que os meus
pés se aproximam do fim
tenho os olhos abertos como gigantes claves
de sol numa manuscrita partitura de mozart
que as noites se abram
e fechem como os girassóis flutuantes da índia
e
que este natal se não for a derradeira
celebração do meu aniversário
seja a primeira primavera de muitas vidas
um cálice aberto às lágrimas de todos os
pequenos deuses perdidos no espaço – ou que
esta primavera seja o primeiro natal e nas
rosas o amor cresça
feroz inteligente como um dente de águia
e pela última vez te possa ter
dentro
quarta-feira, novembro 02, 2005
tratado secreto da medicina # 15
uma palavra esperada – tanto tempo esperada
cada lança no seu lugar cada ferida cada som
interrompido
cada asa
uma palavra chegava – uma casa
cada lança no seu lugar cada ferida cada som
interrompido
cada asa
uma palavra chegava – uma casa
LEITURA OBRIGATÓRIA
tratado secreto da medicina # 14
mergulho as mãos em água tépida como um
pianista o faria – estou na câmara escura e
mergulho as mãos em água tépida – câmara
ardente – como um pianista o faria
antes de um concerto
antes de um piano
procuro esse silêncio perdido entre os dedos
como se mergulhasse a cabeça num pequeno
oceano – antes de um concerto
ante um piano – ante um oceano
pianista o faria – estou na câmara escura e
mergulho as mãos em água tépida – câmara
ardente – como um pianista o faria
antes de um concerto
antes de um piano
procuro esse silêncio perdido entre os dedos
como se mergulhasse a cabeça num pequeno
oceano – antes de um concerto
ante um piano – ante um oceano
terça-feira, novembro 01, 2005
tratado secreto da medicina # 13
neste inferno ser-se vivo é um assunto terrível
– as sombras que me esperam parecem agulhas e as agulhas
uma espécie de
brancura
pronta a manchar-se de uma qualquer seiva sangrenta
e do outro lado um imenso relvado de
malmequeres
– as sombras que me esperam parecem agulhas e as agulhas
uma espécie de
brancura
pronta a manchar-se de uma qualquer seiva sangrenta
e do outro lado um imenso relvado de
malmequeres
tratado secreto da medicina # 12
não existe nada que não se deixe tocar – digo:
o amor toca-se sente-se com a pele
com a palma da mão
e quando a pele toca o amor ele torna-se lúcido
e efémero como as vozes de um coro numa
missa de requiem
ou a vibração persa de um santur – digo:
depois de tocado pelas mãos que sentem
o amor reza e perdura como no éter
a voz da rádio
o amor toca-se sente-se com a pele
com a palma da mão
e quando a pele toca o amor ele torna-se lúcido
e efémero como as vozes de um coro numa
missa de requiem
ou a vibração persa de um santur – digo:
depois de tocado pelas mãos que sentem
o amor reza e perdura como no éter
a voz da rádio