quinta-feira, abril 29, 2004
DOL-U-RON Forte # 34
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
baixa desigual e abençoada
não era feiticeira nem mulher nem anão
noutros tempos, entre os leões
havia sempre uma leoa
diferente
uma leoa mestra
que guiava da sua caverna de pedra e colmo
o crescimento dos dentes-de-leão
o voar das moscas
e as cavalgadas das zebras
uma leoa comandante
uma leoa amorosa
sem presas nem pêlo nem sangue
uma leoa ... andante
baixa desigual e abençoada
não era feiticeira nem mulher nem anão
noutros tempos, entre os leões
havia sempre uma leoa
diferente
uma leoa mestra
que guiava da sua caverna de pedra e colmo
o crescimento dos dentes-de-leão
o voar das moscas
e as cavalgadas das zebras
uma leoa comandante
uma leoa amorosa
sem presas nem pêlo nem sangue
uma leoa ... andante
quarta-feira, abril 28, 2004
o ouro
terça-feira, abril 27, 2004
DOL-U-RON Forte # 33
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
há o sol e as dores das estrelas
há todo o desespero das noites densas
a água num copo de vidro verde
há os lenços de papel amontoados no chão
noites de uma primavera inexistente
a procurarem o meu corpo
a beberem o meu coração
há o ladrar sorridente dos cães fugindo à chuva
quente das mães
há o silêncio amoroso das árvores
há tudo em mim e é imóvel, silencioso, morto
tudo é um escorrer morto em mim
tudo escorre morto para dentro mim
há o tríptico de espelhos na casa de banho
onde me vejo
três
em conflito, em paixão, em desagregação
há o sabonete liquido que está no fim
e as minhas mãos ásperas à espera de uma gordura
perfumada
há a cidade longe, a cidade sem porta
há a revolta
há o medo,
a falta de dor,
a falta de ar-dor
há o pássaro espalhado na parede
o relógio...
é assim
há o sol e as dores das estrelas
há todo o desespero das noites densas
a água num copo de vidro verde
há os lenços de papel amontoados no chão
noites de uma primavera inexistente
a procurarem o meu corpo
a beberem o meu coração
há o ladrar sorridente dos cães fugindo à chuva
quente das mães
há o silêncio amoroso das árvores
há tudo em mim e é imóvel, silencioso, morto
tudo é um escorrer morto em mim
tudo escorre morto para dentro mim
há o tríptico de espelhos na casa de banho
onde me vejo
três
em conflito, em paixão, em desagregação
há o sabonete liquido que está no fim
e as minhas mãos ásperas à espera de uma gordura
perfumada
há a cidade longe, a cidade sem porta
há a revolta
há o medo,
a falta de dor,
a falta de ar-dor
há o pássaro espalhado na parede
o relógio...
é assim
domingo, abril 25, 2004
DOL-U-RON Forte # 32
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
um mínimo olhar lúcido
e voltaria a valer a pena agarrar-te na mão e
voltar a sentir as cores do sol
e voltar
- e voltar a ter visões
e tremores e pálidas esperanças de morrer em paz
abraçar uma árvore
cair redondo de riso
ultrapassar comboios correndo de bicicleta
ao lado dos carris de ferro
comer chocolate preto dentro do pão
ser
outra
vez
suicida num combate que valesse a pena
vestir – voltaria a vestir – o meu casaco azul
à lord jim
(aquele que em criança me dava ar de almirante
e fazia minha avó ter algum orgulho em mim)
um olhar lúcido, mínimo, insignificante
um sorriso que não fosse tão efémero
e voltaria às trincheiras e adormeceria novamente no teu peito
e dormiria horas felizes
e voltava a almoçar
e a ver beleza na minha mãe
e reencontraria o meu pai vivo por entre os dias da sua vida perdida
expulsaria sem medo os invasores da minha cama
as almofadas a mais à cabeceira
voltaria a ligar a luz para ler
voltaria a mim se um segundo mínimo do teu olhar lúcido
me fitasse uma vez mais que fosse
e me
quisesse
um mínimo olhar lúcido
e voltaria a valer a pena agarrar-te na mão e
voltar a sentir as cores do sol
e voltar
- e voltar a ter visões
e tremores e pálidas esperanças de morrer em paz
abraçar uma árvore
cair redondo de riso
ultrapassar comboios correndo de bicicleta
ao lado dos carris de ferro
comer chocolate preto dentro do pão
ser
outra
vez
suicida num combate que valesse a pena
vestir – voltaria a vestir – o meu casaco azul
à lord jim
(aquele que em criança me dava ar de almirante
e fazia minha avó ter algum orgulho em mim)
um olhar lúcido, mínimo, insignificante
um sorriso que não fosse tão efémero
e voltaria às trincheiras e adormeceria novamente no teu peito
e dormiria horas felizes
e voltava a almoçar
e a ver beleza na minha mãe
e reencontraria o meu pai vivo por entre os dias da sua vida perdida
expulsaria sem medo os invasores da minha cama
as almofadas a mais à cabeceira
voltaria a ligar a luz para ler
voltaria a mim se um segundo mínimo do teu olhar lúcido
me fitasse uma vez mais que fosse
e me
quisesse
quinta-feira, abril 22, 2004
DOL-U-RON Forte # 31
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
a minha mão
esquerda
passa sobre os teus ossos
o amor belo
e total de uma passagem carinhosa de dedos sobre
o cheiro
perfumado
da morte acabada de acontecer
o amor prende-se nos pequenos ossos da mão
ainda é ela
ainda a reconheço
como águas ligadas
num rio prateado
um amor longo
líquido
assim os teus ossos
ossos de um corpo a crescer
assim as minhas mãos
como os meu olhos
cegos para o
amor azul do rio desviado do corpo
pressenti a tua partida?
se a pressenti não tive coragem
e deixei-te ir
crepúsculo atrás de crepúsculo
aurora após aurora
neste ar pesado me despeço de ti
a minha mão
esquerda
passa sobre os teus ossos
o amor belo
e total de uma passagem carinhosa de dedos sobre
o cheiro
perfumado
da morte acabada de acontecer
o amor prende-se nos pequenos ossos da mão
ainda é ela
ainda a reconheço
como águas ligadas
num rio prateado
um amor longo
líquido
assim os teus ossos
ossos de um corpo a crescer
assim as minhas mãos
como os meu olhos
cegos para o
amor azul do rio desviado do corpo
pressenti a tua partida?
se a pressenti não tive coragem
e deixei-te ir
crepúsculo atrás de crepúsculo
aurora após aurora
neste ar pesado me despeço de ti
terça-feira, abril 20, 2004
DOL-U-RON Forte # 30
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
o menino viajava no autocarro com a mãe
estava muita gente no autocarro
o menino estava de mão dada
com a mãe
por segundos,
perdeu a mão
da mãe
quando a agarrou de novo
teve
plena,
clara,
objectiva,
consciência de que a sua mãe tinha sido substituída
por
outro ser
exactamente igual à sua mãe
excepcionalmente igual à sua mãe
hoje o menino tem 35 anos
e nunca mais viu a sua verdadeira mãe
aprendeu a conviver com a mãe de substituição
mas a essa nunca deu a mão
o menino viajava no autocarro com a mãe
estava muita gente no autocarro
o menino estava de mão dada
com a mãe
por segundos,
perdeu a mão
da mãe
quando a agarrou de novo
teve
plena,
clara,
objectiva,
consciência de que a sua mãe tinha sido substituída
por
outro ser
exactamente igual à sua mãe
excepcionalmente igual à sua mãe
hoje o menino tem 35 anos
e nunca mais viu a sua verdadeira mãe
aprendeu a conviver com a mãe de substituição
mas a essa nunca deu a mão
sábado, abril 17, 2004
respondendo a,
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
respondendo a,
bonnard e marthe viveram uma espécie de condenação.
eles condenaram-se um ao outro e condenaram-se um a outro.
marthe foi condenada a não envelhecer.
nem a doença ou a morte lhe deu o direito de partir.
ela foi tocada pelos dedos de midas.
assim ficou, para sempre, presa no corpo da jovem dourada que foi.
bonnard foi midas com marthe.
mas não é midas tão sofredor da sua maldição como os seres que ele prendeu em estátua?
como acabou midas?
só.
na maior indigência de alma, mergulhado num lago áureo, sufocando.
marthe foi a presa do toque amaldiçoado de bonnard.
bonnard a presa da maldição de tocar.
amor?
respondendo a,
bonnard e marthe viveram uma espécie de condenação.
eles condenaram-se um ao outro e condenaram-se um a outro.
marthe foi condenada a não envelhecer.
nem a doença ou a morte lhe deu o direito de partir.
ela foi tocada pelos dedos de midas.
assim ficou, para sempre, presa no corpo da jovem dourada que foi.
bonnard foi midas com marthe.
mas não é midas tão sofredor da sua maldição como os seres que ele prendeu em estátua?
como acabou midas?
só.
na maior indigência de alma, mergulhado num lago áureo, sufocando.
marthe foi a presa do toque amaldiçoado de bonnard.
bonnard a presa da maldição de tocar.
amor?
sexta-feira, abril 16, 2004
DOL-U-RON Forte # 29
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
para 'lugar efémero', da luz das pinturas de bonnard
marthe era a mulher pintada dos quadros do velho
esquelético pintor das luzes amarelas.
marthe morreu, como dizer, para a vida
mas não para bonnard
mesmo morta, marthe manteve o seu corpo dourado
banhando-se em pequenas selhas entre vasos de flores
bonnard ofereceu-nos a pele de marthe
e o brilho da água em que se lavava
marthe pintada teve sempre o corpo de criança
como naquela tarde de outono em que pierre a conheceu
e a fez seu modelo
marthe nunca perdeu o corpo
não creio que bonnard a amasse
não creio que marthe amasse bonnard
o sortilégio do encontro entre marthe e bonnard
era demasiado cruel para que se pudessem amar
eles simplesmente existiam um para o outro
imagem
para 'lugar efémero', da luz das pinturas de bonnard
marthe era a mulher pintada dos quadros do velho
esquelético pintor das luzes amarelas.
marthe morreu, como dizer, para a vida
mas não para bonnard
mesmo morta, marthe manteve o seu corpo dourado
banhando-se em pequenas selhas entre vasos de flores
bonnard ofereceu-nos a pele de marthe
e o brilho da água em que se lavava
marthe pintada teve sempre o corpo de criança
como naquela tarde de outono em que pierre a conheceu
e a fez seu modelo
marthe nunca perdeu o corpo
não creio que bonnard a amasse
não creio que marthe amasse bonnard
o sortilégio do encontro entre marthe e bonnard
era demasiado cruel para que se pudessem amar
eles simplesmente existiam um para o outro
imagem
no café
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
hoje, só hoje, dei com este blogue. pff, vão lá:
conversas de café
hoje, só hoje, dei com este blogue. pff, vão lá:
conversas de café
mau sinal
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
hoje li no "a rádio em portugal" sobre a tsf:
"Segundo o “Bareme Rádio” a TSF atingiu, no primeiro trimestre de 2004, o melhor resultado de sempre com 4,9% de Audiência Acumulada de Véspera (AAV). Em comparação com o último trimestre do ano passado (4,4% de AAV) a TSF consegue assim um crescimento de 11,4%. A TSF passa a ser a terceira rádio mais ouvida em Lisboa e Porto e a quarta a nível nacional. O melhor resultado obtido pela TSF foi em 1997, com 4,7% de AAV."
mau sinal
tendo em conta aquilo em que a tsf se tornou...
hoje li no "a rádio em portugal" sobre a tsf:
"Segundo o “Bareme Rádio” a TSF atingiu, no primeiro trimestre de 2004, o melhor resultado de sempre com 4,9% de Audiência Acumulada de Véspera (AAV). Em comparação com o último trimestre do ano passado (4,4% de AAV) a TSF consegue assim um crescimento de 11,4%. A TSF passa a ser a terceira rádio mais ouvida em Lisboa e Porto e a quarta a nível nacional. O melhor resultado obtido pela TSF foi em 1997, com 4,7% de AAV."
mau sinal
tendo em conta aquilo em que a tsf se tornou...
VIDRO AZUL
O cherne e o pavão no Barnabé
quinta-feira, abril 15, 2004
DOL-U-RON Forte # 28
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
foi uma semana complicada. longa. não foi uma semana má. foi longa. só isso. longa. agora sento-me ao computador e ouço a ‘íntima fracção’ de aniversário. vinte anos de ‘intimidade’. como nas longas noites de outros invernos, sinto uma paz lúcida, embalada pelos sons claros e azuis de uma linguagem que não se perdeu. e mais uma vez, pela noite, vivo a fracção de rádio, da amada rádio, que vive... vive... ainda...
o homem preparou os papeis como dantes
como nunca – aliás – deixou de fazer e mergulhou na velha
transparência
no azul de limões em festa
à sua frente, ainda, os pequenos textos da respiração
acumulados de tanto
no tanto que tocado é amado
há tempo perdido?
Há ainda a luz que vem da rua
O mar que se adivinha –
- o mar adivinha-se – o mar
só
se
adivinha
dantes, as tardes eram longas e douradas e as madrugadas
azuis
e trasbordantes de tochas incendiadas na língua
tínhamos os corpos suados, a pele colada a outro
a ver, a pressentir
as madrugadas eram as vozes silenciosas da música inventada
da criatividade de alquimistas perdidos no som da rádio
as madrugadas eram o terreno em que os filhos se
libertavam das mães
e se alongavam nos corpos de amantes conhecidos
os irmãos
era azul
de limões em festa
ácido citrino de tochas incendiadas na saliva e
beijos de criança-adolescente
imaginadamente amante
em tochas de verde
hoje, o homem voltou a criar a madrugada no athanor
da telefonia
no solvitio primordial do éter
a amalgama. o imenso adormecer
o imenso ir adormecendo
visita
o
interior
da
terra
e
rectificando
encontrarás
a
pedra
oculta
foi uma semana complicada. longa. não foi uma semana má. foi longa. só isso. longa. agora sento-me ao computador e ouço a ‘íntima fracção’ de aniversário. vinte anos de ‘intimidade’. como nas longas noites de outros invernos, sinto uma paz lúcida, embalada pelos sons claros e azuis de uma linguagem que não se perdeu. e mais uma vez, pela noite, vivo a fracção de rádio, da amada rádio, que vive... vive... ainda...
o homem preparou os papeis como dantes
como nunca – aliás – deixou de fazer e mergulhou na velha
transparência
no azul de limões em festa
à sua frente, ainda, os pequenos textos da respiração
acumulados de tanto
no tanto que tocado é amado
há tempo perdido?
Há ainda a luz que vem da rua
O mar que se adivinha –
- o mar adivinha-se – o mar
só
se
adivinha
dantes, as tardes eram longas e douradas e as madrugadas
azuis
e trasbordantes de tochas incendiadas na língua
tínhamos os corpos suados, a pele colada a outro
a ver, a pressentir
as madrugadas eram as vozes silenciosas da música inventada
da criatividade de alquimistas perdidos no som da rádio
as madrugadas eram o terreno em que os filhos se
libertavam das mães
e se alongavam nos corpos de amantes conhecidos
os irmãos
era azul
de limões em festa
ácido citrino de tochas incendiadas na saliva e
beijos de criança-adolescente
imaginadamente amante
em tochas de verde
hoje, o homem voltou a criar a madrugada no athanor
da telefonia
no solvitio primordial do éter
a amalgama. o imenso adormecer
o imenso ir adormecendo
visita
o
interior
da
terra
e
rectificando
encontrarás
a
pedra
oculta
segunda-feira, abril 12, 2004
A morte do velho leão
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
Francisco Lyon de Castro
Por POR ANTÓNIO MELO
Segunda-feira, 12 de Abril de 2004
Francisco Lyon de Castro
Por POR ANTÓNIO MELO
Segunda-feira, 12 de Abril de 2004
HORA DO DIABO # 77
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
cena 1
é um homem velho.
não é muito velho de idade.
tem uns setenta anos.
é um homem velho porque sempre foi velho.
é daqueles seres que nasceram velhos e morrerão velhos-relhos.
quando fala acumula uma desagradável saliva castanha no canto direito da boca.
cospe-se um bocado e tem dois dentes estragados à frente.
lava-se pouco e isso sente-se.
é engenheiro civil.
latifundiário alentejano.
tem simpatias salazaristas. muitas simpatias salazaristas.
algumas simpatias franquistas.
foi militar de carreira.
casou-se tarde com uma senhora estimável e teve, também tarde, dois filhos que tenta moldar à sua imagem patética.
cena 2
tenta provar a todos que é nobre. passa dias nas conservatórias do registo civil, militar, etc. a tentar descobrir parentes ‘dons’ nos seus antepassados. desta mania nasceu-lhe uma sub-mania, a de que é um historiador rigoroso e exemplar.
enfim, é um baboso, fascista e desagradável, mas a quem se nota um evidente sofrimento e um irrefutável complexo de inferioridade. quando encontra alguém nunca dá menos de uma hora de seca, sem ouvir, nunca, o outro.
cena 3
ontem fui apanhado pelo homem à porta da casa de um amigo meu e fui logo filado. confesso que me custa mandar o homem à merda. podia fazê-lo e resolvia-se o problema. mas não consigo, custa-me demasiado. então fico a abanar a cabeça para cima e para baixo, para um lado e para o outro, quase até ao desfalecimento. uma tortura.
cena 4
começou a conversa:
«você conhece o fernando rosas, não conhece?».
pois que sim respondi.
«é que lhe mandei uma carta...».
«ah, foi?».
«sim, sim....».
a partir daqui esteve duas horas e um quarto a tentar provar-me que o fernando rosas é um aldrabão. isto porque num livro de correspondências entre o salazar e o embaixador monteiro, numas notas de roda-pé, estão escritas, segundo ele, «as mais grosseiras alarvidades».
por uns instantes pensei que ele se estivesse a referir a coisas de conteúdo. mas não, a maior parte das coisas são deste estilo:
- onde se escreve, por exemplo, josé silva, devia estar escrito sir josé silva.
coisas do tipo, faltas de títulos eclesiásticos, de nobreza, da hierarquia militar. e, lá muito de vez em quando, uma ou outra questão de conteúdo, mas sempre sem qualquer espécie de importância. a juntar a isto uma dose de ódio político impressionante.
«eu quero saber lá do partido dele, ele é ele eu sou eu», isto ele repete de dez em dez minutos.
cena 5
e eu ali, a tentar dizer qualquer coisa, sem conseguir, até que por fim, o filho mais velho do homem percebeu a coisa de dentro de casa e veio em meu socorro. o rapaz resolveu ir buscar o pai. ao fim de vinte minutos conseguiu.
cena 6
a razão porque não consigo mandar o homem bugiar é porque percebo que ele fica mesmo envolvido por estas coisas. sofre mesmo. é uma coisa que ele sente no corpo e vai-se consumindo naquelas alucinações. e com ele arrasta a mulher e um pouco dos filhos. passa noites sem dormir, não come, escreve a gregos e troianos para ‘denunciar’ estas suas ‘descobertas históricas’.
o que me mete medo é que são tipos destes que se tiverem poder de degolar o próximo em nome dos seus nacionalismos fascistas, não hesitam. matam.
diz que vota no partido popular.
cena 7
penso naqueles filhos.
são de comportamento mais moderado, menos senil, mas educados naquele meio são já jovens adolescentes movidos pelo desejo de militar numa direita ‘nacional renovadora e revolucionária’ (sic). o mais velho, 16 anos, no natal fez um pedido ao pai, pediu para ir para o colégio militar. desejos de criança. tadinho.
cena 1
é um homem velho.
não é muito velho de idade.
tem uns setenta anos.
é um homem velho porque sempre foi velho.
é daqueles seres que nasceram velhos e morrerão velhos-relhos.
quando fala acumula uma desagradável saliva castanha no canto direito da boca.
cospe-se um bocado e tem dois dentes estragados à frente.
lava-se pouco e isso sente-se.
é engenheiro civil.
latifundiário alentejano.
tem simpatias salazaristas. muitas simpatias salazaristas.
algumas simpatias franquistas.
foi militar de carreira.
casou-se tarde com uma senhora estimável e teve, também tarde, dois filhos que tenta moldar à sua imagem patética.
cena 2
tenta provar a todos que é nobre. passa dias nas conservatórias do registo civil, militar, etc. a tentar descobrir parentes ‘dons’ nos seus antepassados. desta mania nasceu-lhe uma sub-mania, a de que é um historiador rigoroso e exemplar.
enfim, é um baboso, fascista e desagradável, mas a quem se nota um evidente sofrimento e um irrefutável complexo de inferioridade. quando encontra alguém nunca dá menos de uma hora de seca, sem ouvir, nunca, o outro.
cena 3
ontem fui apanhado pelo homem à porta da casa de um amigo meu e fui logo filado. confesso que me custa mandar o homem à merda. podia fazê-lo e resolvia-se o problema. mas não consigo, custa-me demasiado. então fico a abanar a cabeça para cima e para baixo, para um lado e para o outro, quase até ao desfalecimento. uma tortura.
cena 4
começou a conversa:
«você conhece o fernando rosas, não conhece?».
pois que sim respondi.
«é que lhe mandei uma carta...».
«ah, foi?».
«sim, sim....».
a partir daqui esteve duas horas e um quarto a tentar provar-me que o fernando rosas é um aldrabão. isto porque num livro de correspondências entre o salazar e o embaixador monteiro, numas notas de roda-pé, estão escritas, segundo ele, «as mais grosseiras alarvidades».
por uns instantes pensei que ele se estivesse a referir a coisas de conteúdo. mas não, a maior parte das coisas são deste estilo:
- onde se escreve, por exemplo, josé silva, devia estar escrito sir josé silva.
coisas do tipo, faltas de títulos eclesiásticos, de nobreza, da hierarquia militar. e, lá muito de vez em quando, uma ou outra questão de conteúdo, mas sempre sem qualquer espécie de importância. a juntar a isto uma dose de ódio político impressionante.
«eu quero saber lá do partido dele, ele é ele eu sou eu», isto ele repete de dez em dez minutos.
cena 5
e eu ali, a tentar dizer qualquer coisa, sem conseguir, até que por fim, o filho mais velho do homem percebeu a coisa de dentro de casa e veio em meu socorro. o rapaz resolveu ir buscar o pai. ao fim de vinte minutos conseguiu.
cena 6
a razão porque não consigo mandar o homem bugiar é porque percebo que ele fica mesmo envolvido por estas coisas. sofre mesmo. é uma coisa que ele sente no corpo e vai-se consumindo naquelas alucinações. e com ele arrasta a mulher e um pouco dos filhos. passa noites sem dormir, não come, escreve a gregos e troianos para ‘denunciar’ estas suas ‘descobertas históricas’.
o que me mete medo é que são tipos destes que se tiverem poder de degolar o próximo em nome dos seus nacionalismos fascistas, não hesitam. matam.
diz que vota no partido popular.
cena 7
penso naqueles filhos.
são de comportamento mais moderado, menos senil, mas educados naquele meio são já jovens adolescentes movidos pelo desejo de militar numa direita ‘nacional renovadora e revolucionária’ (sic). o mais velho, 16 anos, no natal fez um pedido ao pai, pediu para ir para o colégio militar. desejos de criança. tadinho.
domingo, abril 11, 2004
A TABACARIA
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
Voltar á TABACARIA. hoje e sempre. sempre.
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
Álvaro de Campos, 15-1-1928
Voltar á TABACARIA. hoje e sempre. sempre.
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
Álvaro de Campos, 15-1-1928
sexta-feira, abril 09, 2004
DOL-U-RON Forte # 27
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
os baloiços pressentem as águas por baixo
águas que no baloiço descobrem a criança pressentida
águas que abrem pequenas feridas de lama
nos pés das crianças baloiçantes -
- essas águas feridas passam sem olhar o
pequeno cais, as
pequenas vozes, as
pequenas mãos agarradas às correntes
interrompem o seu trajecto perfumado
as águas não aguentam o peso do rio que são
o olhar das crianças não perdoa a dor da água
desconhece a dor de uma nascente ou
o grito dos peixes vermelhos antes de serem alimentados
pelas
pequenas
mãos
agarradas
às
correntes
as crianças ouvem os gritos do baloiço
as crianças ouvem os seus gritos
as crianças ouvem desmesuradamente
as crianças penduram-se nas correntes dos baloiços
para
ouvir o gemer contido dos pais com medo da queda do filho
as crianças ouvem os
baloiços contidos em gritos
de correntes à volta dos pais
as crianças ouvem
na sepultura do pai
ao lado da mãe
o som de pôr flores numa jarra
de deitar terra sobre o caixão castanho e dourado
as crianças são o caixão do pai arrebatado pelas águas
deitado às feridas de lama
sob os baloiços, sobre as feridas
ouvindo para além da voz pressentida dos filhos
os baloiços pressentem as águas por baixo
águas que no baloiço descobrem a criança pressentida
águas que abrem pequenas feridas de lama
nos pés das crianças baloiçantes -
- essas águas feridas passam sem olhar o
pequeno cais, as
pequenas vozes, as
pequenas mãos agarradas às correntes
interrompem o seu trajecto perfumado
as águas não aguentam o peso do rio que são
o olhar das crianças não perdoa a dor da água
desconhece a dor de uma nascente ou
o grito dos peixes vermelhos antes de serem alimentados
pelas
pequenas
mãos
agarradas
às
correntes
as crianças ouvem os gritos do baloiço
as crianças ouvem os seus gritos
as crianças ouvem desmesuradamente
as crianças penduram-se nas correntes dos baloiços
para
ouvir o gemer contido dos pais com medo da queda do filho
as crianças ouvem os
baloiços contidos em gritos
de correntes à volta dos pais
as crianças ouvem
na sepultura do pai
ao lado da mãe
o som de pôr flores numa jarra
de deitar terra sobre o caixão castanho e dourado
as crianças são o caixão do pai arrebatado pelas águas
deitado às feridas de lama
sob os baloiços, sobre as feridas
ouvindo para além da voz pressentida dos filhos
quinta-feira, abril 08, 2004
DOL-U-RON Forte # 26
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
uma pequena gota de limão entre espadas
uma garganta amada - minha morada de cravos
sabor a bagas silvestres - a venenos
sabor a fadas - minha morada envenenada
sorrio-te
uma pequena gota de limão entre espadas
uma garganta amada - minha morada de cravos
sabor a bagas silvestres - a venenos
sabor a fadas - minha morada envenenada
sorrio-te
Íntima Fracção II
«No dia 8 de Abril de 1984, foi transmitida a primeira emissão da "Íntima Fracção". O programa começou na Antena 1, através da qual foi transmitido até Setembro de 1989. Passou depois para a TSF, onde fez um percurso até final de Setembro de 2003. A Íntima Fracção foi habitualmente transmitida uma vez por semana, numa das noites de fim-de-semana (ou ao sábado, ou ao domingo). Entre Setembro de 1993 e Setembro de 1996, o programa foi diário, de 2ª a 6ª. Sempre duas horas.
Até este momento, houve uma série de pessoas a quem a IF deve a sua existência e sobrevivência. Sansão Coelho, que apresentou a minha ideia à direcção de Programas da Antena 1. José Manuel Nunes e Estrela Serrano, que a aprovaram. Álvaro Perdigão, coordenador de programas da Antena 1 na RDP-Centro que, na semana anterior à primeira edição, conseguiu gerir a espantosa situação de eu me encontrar dispensado da RDP (por falta de verbas), embora o programa continuasse a fazer parte da grelha anunciada !
Depois, na ida para a TSF, Jorge Castilho que liderou a ideia da RJC (TSF em Coimbra). Emídio Rangel, que desde o início foi um entusiasta da IF na TSF, o que para uma rádio de informação nem sempre foi pacífico. David Borges, que "puxou" a IF para programa diário. Carlos Andrade, o meu querido director de mais de metade da vida da TSF, o Homem Bom, que proporcionou uma série consecutiva de 9 anos de Íntimas, sem a mais pequena interferência e com um respeito absoluto pelo seu formato e, consequentemente, por mim.
É vulgar, mas não fica nada mal dizer: OBRIGADO !»
por Francisco Amaral
Até este momento, houve uma série de pessoas a quem a IF deve a sua existência e sobrevivência. Sansão Coelho, que apresentou a minha ideia à direcção de Programas da Antena 1. José Manuel Nunes e Estrela Serrano, que a aprovaram. Álvaro Perdigão, coordenador de programas da Antena 1 na RDP-Centro que, na semana anterior à primeira edição, conseguiu gerir a espantosa situação de eu me encontrar dispensado da RDP (por falta de verbas), embora o programa continuasse a fazer parte da grelha anunciada !
Depois, na ida para a TSF, Jorge Castilho que liderou a ideia da RJC (TSF em Coimbra). Emídio Rangel, que desde o início foi um entusiasta da IF na TSF, o que para uma rádio de informação nem sempre foi pacífico. David Borges, que "puxou" a IF para programa diário. Carlos Andrade, o meu querido director de mais de metade da vida da TSF, o Homem Bom, que proporcionou uma série consecutiva de 9 anos de Íntimas, sem a mais pequena interferência e com um respeito absoluto pelo seu formato e, consequentemente, por mim.
É vulgar, mas não fica nada mal dizer: OBRIGADO !»
por Francisco Amaral
Íntima Fracção 20 Anos
"20 anos de fracções íntimas_da música recatada dos búzios_a if já subiu para além do éter_acolhida numa rede mais fina_mais intensa_mais resistente_um centro_uma concha azul_irradiando milhares de cordões_nós somos as pontas_e continuamos_aqui_parabéns francisco"
quarta-feira, abril 07, 2004
Sarah Kane
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
Nasceu em Londres a 3 de Fevereiro de 1971, filha de pais jornalistas. BLASTED, a sua primeira peça, estreou em Janeiro de 1995 (no Royal Court Theatre) numa encenação de James Macdonald, PHAEDRA'S LOVE seria a segunda, encomendada pelo Gate Theatre e estreada em Maio em 1996 numa encenação da própria Sarah Kane. Seguiu-se CLEANSED, dirigida por James Macdonald em Abril de 1998 e Crave em Agosto do mesmo ano, escrita sob o pseudónimo Marie Kelvedon e dirigida no teatro Paines Plough por Vicky Featherstone. Encenou, além disso, o WOYZECK de Georg Büchner. Morreu em Londres a 20 de Fevereiro de 1999. Em Julho de 2000 estreou-se 4.48 PSYCHOSIS (no Royal Court) encenada por James Macdonald. Escreveu um argumento para televisão, SKIN (Channel Four/British Screen) publicado no nº 5 da Revista Artistas Unidos. A sua obra tem interessado recentemente os mais diversos encenadores, como Peter Zadek, Bernard Sobel, Jean-Marie Patte, Barbara Nativi e Thomas Ostermeier. A editora Campo das Letras editou as cinco peças de Sarah Kane com traduções de Pedro Marques.
Nasceu em Londres a 3 de Fevereiro de 1971, filha de pais jornalistas. BLASTED, a sua primeira peça, estreou em Janeiro de 1995 (no Royal Court Theatre) numa encenação de James Macdonald, PHAEDRA'S LOVE seria a segunda, encomendada pelo Gate Theatre e estreada em Maio em 1996 numa encenação da própria Sarah Kane. Seguiu-se CLEANSED, dirigida por James Macdonald em Abril de 1998 e Crave em Agosto do mesmo ano, escrita sob o pseudónimo Marie Kelvedon e dirigida no teatro Paines Plough por Vicky Featherstone. Encenou, além disso, o WOYZECK de Georg Büchner. Morreu em Londres a 20 de Fevereiro de 1999. Em Julho de 2000 estreou-se 4.48 PSYCHOSIS (no Royal Court) encenada por James Macdonald. Escreveu um argumento para televisão, SKIN (Channel Four/British Screen) publicado no nº 5 da Revista Artistas Unidos. A sua obra tem interessado recentemente os mais diversos encenadores, como Peter Zadek, Bernard Sobel, Jean-Marie Patte, Barbara Nativi e Thomas Ostermeier. A editora Campo das Letras editou as cinco peças de Sarah Kane com traduções de Pedro Marques.
terça-feira, abril 06, 2004
O Amor de Fedra
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
"Hipólito vive fechado no quarto, vê televisão e deleita-se com os seus brinquedos caros. Está doente. Os outros não existem. É com o suicídio de Fedra que o príncipe percebe que não tem lugar no mundo: "Se tivesse havido mais momentos como este." O AMOR DE FEDRA é uma recriação moderna e convulsiva do mito: e uma estranha peça de câmara…
FEDRA És difícil. Temperamental, cínico, amargo, gordo, decadente, mimado. Passas o dia na cama, vês televisão à noite, arrastas-te pela casa com o sono nos olhos e não tens um pensamento para ninguém. Sofres. Eu adoro-te.
HIPÓLITO Não é muito lógico.
FEDRA O amor não é lógico.
Sarah Kane, O AMOR DE FEDRA"
O AMOR DE FEDRA de Sarah Kane
Tradução Pedro Marques
Encenação Jorge Silva Melo
Com Miguel Borges, Teresa Sobral, Carla Galvão, Paulo Moura Lopes, António Filipe, Vítor Correia, Pedro Marques, Sérgio Grilo, Hugo Samora e Sérgio Gomes
Cenografia José Manuel Reis
Figurinos Rita Lopes Alves
Luz Pedro Domingos
Som Paulo Curado
Montagem Luís Dias
Encenação Jorge Silva Melo e Pedro Marques assistidos por Paulo Moura Lopes e António Filipe
Uma co-produção Artistas Unidos / A&M / CCB
Estreia: 10 de Março de 2004 na Sala de Ensaio do CCB
De 25 de Março a 25 de Abril no Teatro Taborda
"Hipólito vive fechado no quarto, vê televisão e deleita-se com os seus brinquedos caros. Está doente. Os outros não existem. É com o suicídio de Fedra que o príncipe percebe que não tem lugar no mundo: "Se tivesse havido mais momentos como este." O AMOR DE FEDRA é uma recriação moderna e convulsiva do mito: e uma estranha peça de câmara…
FEDRA És difícil. Temperamental, cínico, amargo, gordo, decadente, mimado. Passas o dia na cama, vês televisão à noite, arrastas-te pela casa com o sono nos olhos e não tens um pensamento para ninguém. Sofres. Eu adoro-te.
HIPÓLITO Não é muito lógico.
FEDRA O amor não é lógico.
Sarah Kane, O AMOR DE FEDRA"
O AMOR DE FEDRA de Sarah Kane
Tradução Pedro Marques
Encenação Jorge Silva Melo
Com Miguel Borges, Teresa Sobral, Carla Galvão, Paulo Moura Lopes, António Filipe, Vítor Correia, Pedro Marques, Sérgio Grilo, Hugo Samora e Sérgio Gomes
Cenografia José Manuel Reis
Figurinos Rita Lopes Alves
Luz Pedro Domingos
Som Paulo Curado
Montagem Luís Dias
Encenação Jorge Silva Melo e Pedro Marques assistidos por Paulo Moura Lopes e António Filipe
Uma co-produção Artistas Unidos / A&M / CCB
Estreia: 10 de Março de 2004 na Sala de Ensaio do CCB
De 25 de Março a 25 de Abril no Teatro Taborda
domingo, abril 04, 2004
DOL-U-RON Forte # 25
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
para r.
ouviu-se
o primeiro silêncio do verão
crueza da cidade, um porão
a cidade a explodir de objectos
o mar a entrar pelos templos
costas flageladas de cidades-templo
caíram algumas lágrimas verdes
e a estátua e a dor da estátua flagelada de verde
no jardim o corpo do gato preto parado
olhando o lago
o lago transpirando-se de peixes e
as mulheres junto ao porão
com fome
toda a cidade a aquecer
sem perdão
sem riso
corpos revoltados de saber
a arder de tão brancos
como dentes inteiros em bocas de sorriso
pernas preciosas a contorcerem-se como bronze
candeias de barco
bugio ao longe a apagar
e tu, porque choras?
para r.
ouviu-se
o primeiro silêncio do verão
crueza da cidade, um porão
a cidade a explodir de objectos
o mar a entrar pelos templos
costas flageladas de cidades-templo
caíram algumas lágrimas verdes
e a estátua e a dor da estátua flagelada de verde
no jardim o corpo do gato preto parado
olhando o lago
o lago transpirando-se de peixes e
as mulheres junto ao porão
com fome
toda a cidade a aquecer
sem perdão
sem riso
corpos revoltados de saber
a arder de tão brancos
como dentes inteiros em bocas de sorriso
pernas preciosas a contorcerem-se como bronze
candeias de barco
bugio ao longe a apagar
e tu, porque choras?
sábado, abril 03, 2004
DOL-U-RON Forte # 24
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
para o Francisco Amaral, nos 20 anos da 'Íntima Fracção':
que faço com as horas de dor?
eu, rádio
tremor de um éter perdido, de órgãos devorados
que faço quando o amor é cada vez mais fraco
e as noites mais curtas e sem olhos
não há silêncio e morrem as paixões azuis
demasiados os invasores
são
demasiadas
as
ruidosas trovoadas-sem-fios
nem sequer relâmpagos
já só trovões missionários do negro da lua
onde estás floresta?
onde
azul
- minha telefonia
para o Francisco Amaral, nos 20 anos da 'Íntima Fracção':
que faço com as horas de dor?
eu, rádio
tremor de um éter perdido, de órgãos devorados
que faço quando o amor é cada vez mais fraco
e as noites mais curtas e sem olhos
não há silêncio e morrem as paixões azuis
demasiados os invasores
são
demasiadas
as
ruidosas trovoadas-sem-fios
nem sequer relâmpagos
já só trovões missionários do negro da lua
onde estás floresta?
onde
azul
- minha telefonia
quinta-feira, abril 01, 2004
DOL-U-RON Forte # 23
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
cheiro a linho lavado
lençol
orquídeas perdidas por relâmpagos
doridas mãos sem filhos
na cama sonhos de outono
sonhos podres de infância
e minhas irmãs adormecidas de vidas perdidas
à minha volta
levando-me
a alma e o coração
lavando-me
os pés e o corpo com óleos de perfeição
e águas egípcias correndo no lavatório
e eu tão morto
tão longe
do meu lençol antigo
da herança de meu pai
das janelas esculpidas em mármore
de veneza
onde acordarei uma vez mais para respirar a tua presença –
doce trovoada?
cheiro a linho lavado
lençol
orquídeas perdidas por relâmpagos
doridas mãos sem filhos
na cama sonhos de outono
sonhos podres de infância
e minhas irmãs adormecidas de vidas perdidas
à minha volta
levando-me
a alma e o coração
lavando-me
os pés e o corpo com óleos de perfeição
e águas egípcias correndo no lavatório
e eu tão morto
tão longe
do meu lençol antigo
da herança de meu pai
das janelas esculpidas em mármore
de veneza
onde acordarei uma vez mais para respirar a tua presença –
doce trovoada?