segunda-feira, abril 12, 2004
HORA DO DIABO # 77
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
cena 1
é um homem velho.
não é muito velho de idade.
tem uns setenta anos.
é um homem velho porque sempre foi velho.
é daqueles seres que nasceram velhos e morrerão velhos-relhos.
quando fala acumula uma desagradável saliva castanha no canto direito da boca.
cospe-se um bocado e tem dois dentes estragados à frente.
lava-se pouco e isso sente-se.
é engenheiro civil.
latifundiário alentejano.
tem simpatias salazaristas. muitas simpatias salazaristas.
algumas simpatias franquistas.
foi militar de carreira.
casou-se tarde com uma senhora estimável e teve, também tarde, dois filhos que tenta moldar à sua imagem patética.
cena 2
tenta provar a todos que é nobre. passa dias nas conservatórias do registo civil, militar, etc. a tentar descobrir parentes ‘dons’ nos seus antepassados. desta mania nasceu-lhe uma sub-mania, a de que é um historiador rigoroso e exemplar.
enfim, é um baboso, fascista e desagradável, mas a quem se nota um evidente sofrimento e um irrefutável complexo de inferioridade. quando encontra alguém nunca dá menos de uma hora de seca, sem ouvir, nunca, o outro.
cena 3
ontem fui apanhado pelo homem à porta da casa de um amigo meu e fui logo filado. confesso que me custa mandar o homem à merda. podia fazê-lo e resolvia-se o problema. mas não consigo, custa-me demasiado. então fico a abanar a cabeça para cima e para baixo, para um lado e para o outro, quase até ao desfalecimento. uma tortura.
cena 4
começou a conversa:
«você conhece o fernando rosas, não conhece?».
pois que sim respondi.
«é que lhe mandei uma carta...».
«ah, foi?».
«sim, sim....».
a partir daqui esteve duas horas e um quarto a tentar provar-me que o fernando rosas é um aldrabão. isto porque num livro de correspondências entre o salazar e o embaixador monteiro, numas notas de roda-pé, estão escritas, segundo ele, «as mais grosseiras alarvidades».
por uns instantes pensei que ele se estivesse a referir a coisas de conteúdo. mas não, a maior parte das coisas são deste estilo:
- onde se escreve, por exemplo, josé silva, devia estar escrito sir josé silva.
coisas do tipo, faltas de títulos eclesiásticos, de nobreza, da hierarquia militar. e, lá muito de vez em quando, uma ou outra questão de conteúdo, mas sempre sem qualquer espécie de importância. a juntar a isto uma dose de ódio político impressionante.
«eu quero saber lá do partido dele, ele é ele eu sou eu», isto ele repete de dez em dez minutos.
cena 5
e eu ali, a tentar dizer qualquer coisa, sem conseguir, até que por fim, o filho mais velho do homem percebeu a coisa de dentro de casa e veio em meu socorro. o rapaz resolveu ir buscar o pai. ao fim de vinte minutos conseguiu.
cena 6
a razão porque não consigo mandar o homem bugiar é porque percebo que ele fica mesmo envolvido por estas coisas. sofre mesmo. é uma coisa que ele sente no corpo e vai-se consumindo naquelas alucinações. e com ele arrasta a mulher e um pouco dos filhos. passa noites sem dormir, não come, escreve a gregos e troianos para ‘denunciar’ estas suas ‘descobertas históricas’.
o que me mete medo é que são tipos destes que se tiverem poder de degolar o próximo em nome dos seus nacionalismos fascistas, não hesitam. matam.
diz que vota no partido popular.
cena 7
penso naqueles filhos.
são de comportamento mais moderado, menos senil, mas educados naquele meio são já jovens adolescentes movidos pelo desejo de militar numa direita ‘nacional renovadora e revolucionária’ (sic). o mais velho, 16 anos, no natal fez um pedido ao pai, pediu para ir para o colégio militar. desejos de criança. tadinho.
cena 1
é um homem velho.
não é muito velho de idade.
tem uns setenta anos.
é um homem velho porque sempre foi velho.
é daqueles seres que nasceram velhos e morrerão velhos-relhos.
quando fala acumula uma desagradável saliva castanha no canto direito da boca.
cospe-se um bocado e tem dois dentes estragados à frente.
lava-se pouco e isso sente-se.
é engenheiro civil.
latifundiário alentejano.
tem simpatias salazaristas. muitas simpatias salazaristas.
algumas simpatias franquistas.
foi militar de carreira.
casou-se tarde com uma senhora estimável e teve, também tarde, dois filhos que tenta moldar à sua imagem patética.
cena 2
tenta provar a todos que é nobre. passa dias nas conservatórias do registo civil, militar, etc. a tentar descobrir parentes ‘dons’ nos seus antepassados. desta mania nasceu-lhe uma sub-mania, a de que é um historiador rigoroso e exemplar.
enfim, é um baboso, fascista e desagradável, mas a quem se nota um evidente sofrimento e um irrefutável complexo de inferioridade. quando encontra alguém nunca dá menos de uma hora de seca, sem ouvir, nunca, o outro.
cena 3
ontem fui apanhado pelo homem à porta da casa de um amigo meu e fui logo filado. confesso que me custa mandar o homem à merda. podia fazê-lo e resolvia-se o problema. mas não consigo, custa-me demasiado. então fico a abanar a cabeça para cima e para baixo, para um lado e para o outro, quase até ao desfalecimento. uma tortura.
cena 4
começou a conversa:
«você conhece o fernando rosas, não conhece?».
pois que sim respondi.
«é que lhe mandei uma carta...».
«ah, foi?».
«sim, sim....».
a partir daqui esteve duas horas e um quarto a tentar provar-me que o fernando rosas é um aldrabão. isto porque num livro de correspondências entre o salazar e o embaixador monteiro, numas notas de roda-pé, estão escritas, segundo ele, «as mais grosseiras alarvidades».
por uns instantes pensei que ele se estivesse a referir a coisas de conteúdo. mas não, a maior parte das coisas são deste estilo:
- onde se escreve, por exemplo, josé silva, devia estar escrito sir josé silva.
coisas do tipo, faltas de títulos eclesiásticos, de nobreza, da hierarquia militar. e, lá muito de vez em quando, uma ou outra questão de conteúdo, mas sempre sem qualquer espécie de importância. a juntar a isto uma dose de ódio político impressionante.
«eu quero saber lá do partido dele, ele é ele eu sou eu», isto ele repete de dez em dez minutos.
cena 5
e eu ali, a tentar dizer qualquer coisa, sem conseguir, até que por fim, o filho mais velho do homem percebeu a coisa de dentro de casa e veio em meu socorro. o rapaz resolveu ir buscar o pai. ao fim de vinte minutos conseguiu.
cena 6
a razão porque não consigo mandar o homem bugiar é porque percebo que ele fica mesmo envolvido por estas coisas. sofre mesmo. é uma coisa que ele sente no corpo e vai-se consumindo naquelas alucinações. e com ele arrasta a mulher e um pouco dos filhos. passa noites sem dormir, não come, escreve a gregos e troianos para ‘denunciar’ estas suas ‘descobertas históricas’.
o que me mete medo é que são tipos destes que se tiverem poder de degolar o próximo em nome dos seus nacionalismos fascistas, não hesitam. matam.
diz que vota no partido popular.
cena 7
penso naqueles filhos.
são de comportamento mais moderado, menos senil, mas educados naquele meio são já jovens adolescentes movidos pelo desejo de militar numa direita ‘nacional renovadora e revolucionária’ (sic). o mais velho, 16 anos, no natal fez um pedido ao pai, pediu para ir para o colégio militar. desejos de criança. tadinho.