<$BlogRSDUrl$>

domingo, agosto 22, 2004

nougat 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

para a eduarda dionísio

é para isto que os domingos servem acorda-se com recordações (e dores de cabeça)
o resto
d-
-o
dia é tortura e horas que não passam hoje
que é domingo lembrei-
me
do sabor de uma barra de nougat comida na abril em maio em noite de ruy belo e drummond
quando era miúdo a minha mãe subornava-me a vontade de não ir à escola com barras
do mais puro nougat
continuei
sempre
a não querer ir à escola mas fiquei a gostar de barras de nougat
as barras de nougat fazem parte de uma série de coisas que existiam
que por existirem faziam a vida valer a pena
e
durante muito tempo haviam muitas dessas coisas
eu pelo menos dava de caras com muitas dessas coisas que faziam
da vida
a minha vida
como gradualmente fui constatando o desaparecimento da maior parte dessas coisas
que tornavam a vida
a minha vida pensei que as barras de nougat também já não se fabricavam

mas ontem dei com um frasco delas
de barras de nougat na abril em maio

na abril em maio dá-se às vezes com coisas que julgava já não se fabricarem
dentro de frascos ou à mão do olhar
não são coisas muito complicadas são coisas dessas que falava
coisas como chinelos confortáveis bolas de pano poemas pendurados nas paredes livros do mário dionísio pinturas e desenhos e colagens expostas sem ser em exposição cadernos em branco onde se pode sonhar escrever coisas de amor ou planos de felicidade livros do trotsky ou mesmo do joão martins pereira fotografias do morandi em fotocópia ou um grande retrato da tina modotti livros editados pelo vítor silva tavares brochuras com poemas que quase ninguém leu enquanto faz teatro quem faz teatro porque quer fazer teatro e é só por isso que faz teatro –
– sonhos de bandeiras e letras pintadas nas paredes e restos de máquinas com suor de labor operário vídeos (para sócios) cinzeiros pesados e papeis de tabaco por fumar –

hoje que é domingo e as horas de tortura estão mesmo quase a começar pergunto-me se

parece-me razoável que ainda haja
razões para as coisas serem feitas porque ideias há e é uma estupidez dizer que há falta delas
eu sempre tive ideias as ideias que tenho é que não interessam a ninguém
mas isso
como se costuma dizer é outra história pergunto-
me
se as minhas mãos seriam capazes de reencontrar a vontade de não ir à escola
a todas as escolas que existem e a que temos que ir
ficando a comer nougats ao lado de alguém que não quisesse ficar só
alguém que também quisesse comer
trincar
– com essa pessoa que imagino ainda poder existir –
nougats inventados
que soassem a batidas de tambor
a filmes
a desenhos
a textos escritos com letras e raivas amorosas
lutar mais uma vez por esse lugar conjunto onde
as mãos se usassem em conjunto com a cabeça
ou separadamentemas mas que se usassem
se sujassem


This page is powered by Blogger. Isn't yours?