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segunda-feira, novembro 17, 2003

queria de ti um país de bondade e de bruma/queria de ti o mar de uma rosa de espuma - Mário Cesariny

Diário de Imagens “Saudades de Antero”

É preciso voltar atrás e relembrar. É insuportável ver como esta “civilização” de barbárie promove a falta de memória como forma de se perpetuar e como metástases cancerígenas se espalha no sangue dos seres. Nada dura mais que um segundo televisivo.
Sabemos que o príncipe herdeiro da coroa do estado espanhol se vai casar com uma jornalista. Sabemos que um pária do jet 7 português, casado com uma múmia milionária, foi preso porque transportava 400 mil contos em jóias não declaradas no avião, e que coitadinho teve que passar uma noite na esquadra e, pior, teve que vestir a camisola de outro. Sabemos que o “reizinho” de Portugal (não estou a falar do Mário Soares) procria de dois em dois anos com a “reizinha” e assistimos aos baptizados das criancinhas em directo pela tv. Sabemos que a mulher do Vale e Azevedo, passando por muitas e penosas dificuldades, teve que começar a , organizando festas de luxo na sua “casinha” de Sintra. Sabemos que o Carrilho fez um filho à Barbara Guimarães. Sabemos que a Margarida não sei quantas editou mais uma coisa de páginas brancas com letras impressas falando de “fodas” e orgasmos múltiplos. Que bom saber tantas coisas! Que bom estar informado! Isso e muito mais. Coisas que interessam a todos.
Dizia o Mário Cesariny “…afinal o que importa não é haver gente com fome porque assim como assim há muita gente que come”. E é assim mesmo não é? Que importa que milhares de mulheres no mundo sejam diariamente mutiladas em nome de uma tradição de humilhação e horror, se assim como assim há tantas mulheres que o não são.
No dia 18 de Maio de 2003, a Sofia Branco, jornalista do Público, publicou uma noticia no seu jornal, falando sobre a recusa do estado português em dar asilo a uma queniana que tinha fugido à mutilação genital. Que nos importa isso? Queremos nós lá saber disso. Alguém se lembra da noticia?
Combater a imposta falta de memória é a luta que importa travar.
Aqui fica a republicação dessa noticia. À Sofia Branco, o meu profundo agradecimento por travar a luta da inteligência no meio desta bandalheira desumana em que nadamos.

Portugal nega asilo a queniana que fugiu à mutilação genital feminina

Susan chegou a Portugal em Junho de 2002. Dois meses depois a queniana pedia asilo, alegando ter fugido à mutilação genital feminina (MGF). O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), primeiro, e o Comissariado Nacional para os Refugiados (CNR), depois, rejeitaram o pedido. Susan continua em Lisboa, ilegal, sem dinheiro e sem trabalho, à espera do resultado do recurso interposto em tribunal.
Sem saber sequer onde ficava Portugal, cuja embaixada em Nairobi apenas foi a mais rápida em conceder-lhe o visto de turismo que pretendia, e sem falar uma palavra de português, Susan chegou ao Aeroporto da Portela na noite de 20 de Junho do ano passado, com 38 anos, 70 euros no bolso e ainda a pensar se teria tomado a decisão certa.
Para trás ficaram os pais e um filho menor. Mas, para Susan, a opção era ficar no Quénia e ser sujeita à MGF ou fugir do país de origem e manter intocados os seus órgãos genitais. Susan escolheu a fuga e não se arrepende, embora esteja agora carregada de desilusão face a uma Europa que ela "pensava que protegia os direitos humanos".

Susan aceitou contar ao PUBLICO.PT a sua história, embora tenha, para tal, escolhido um nome fictício.

Tudo começou com a morte do marido. Segundo uma tradição local ancestral — comum em algumas tribos africanas —, a viúva tem de casar um dos irmãos do falecido esposo. Ora, Susan não amava o cunhado e, mais importante do que isso, sabia que ele pertencia a uma seita fanática do Quénia chamada mungiki (ver caixa), que, entre outras perseguições às mulheres, defende a MGF — prática incluída nos rituais de iniciação à vida adulta de muitos países africanos, que, podendo assumir diversas formas, passa sempre por alguma forma de amputação dos genitais femininos.

A excisão é um "acto satânico"
Em conversa num café de Lisboa, Susan explicou, usando o inglês como língua franca (que fala, aliás, bastante bem), que essa tradição de casar com um cunhado é "muito antiga", mas não se coaduna com a educação que recebeu. "É suposto escolher-se com quem casar. Como se pode casar com alguém que não se ama?", questiona, sem esperar resposta. Disse ao cunhado que não queria desposá-lo, até porque ainda "estava de luto e deprimida" com a morte do marido. Algumas ameaças, insultos e ofensas corporais depois, uma amiga casada com um membro dos mungiki disse-lhe que o cunhado pretendia obrigá-la a casar-se com ele e, com a ajuda de um grupo de membros da seita, mutilá-la à força.

Susan já tinha lido sobre a actuação dos mungiki nos jornais nacionais e teve medo. "Não podia ser excisada, preciso do meu corpo, ele é a minha vida. Preferia morrer!". Susan conhecia mulheres excisadas que "aceitaram a mutilação por ser tradição, mas que lamentaram depois". Cristã evangelista, Susan não tem dúvidas: "É um acto satânico, que não vem na Bíblia, é uma doutrina inventada pelas pessoas". No entanto, reconhece, os kukuyu, a sua tribo, acreditam que a MGF faz com que as mulheres "percam o desejo sexual e permaneçam seguras". "Precisamos do clítoris, Deus colocou-o ali por alguma razão", contrapõe, convicta de que escapou por pouco à perda da sua feminilidade.

Além disso, Susan sabe que os instrumentos usados na prática não são esterilizados e tem medo da sida, num país onde a epidemia afecta 14 por cento da população.

A fuga como primeira viagem
Começou a pensar em fugir, "a reunir algumas coisas e documentos". Pára um momento. Suspira, trava uma lágrima e tenta recuperar o sorriso que traz normalmente na tez mulata. "Ainda está tudo muito fresco na minha memória...". O rosto entristece e contorce-se em esgares à medida que vai narrando a fuga. Optou por escapar de Kimunyu, onde vivia, durante a noite, para que ninguém desse conta. Pegou no filho e "no que podia", desceu e subiu montes, pernoitou na floresta escura, reatou caminho quando o sol despontou, desceu e subiu mais montes até chegar finalmente a Thakwa, aldeia onde vivem os seus pais. Na mente, a ideia fixa de recusar submeter-se à "humilhação" de ser mutilada.

Ficou algum tempo em casa dos pais, durante o qual planeou a fuga. A mãe aconselhou-a a aceitar casar-se com o cunhado, a esperar para ver o que ia acontecer. "Não podia esperar mais. Cheguei à conclusão de que era melhor perder tudo e começar do zero".

Susan preparava-se psicologicamente para estrear o seu passaporte e fazer a primeira viagem da sua vida. Contactou "um agente" e deu-lhe dinheiro (4000 shillings/49 euros) para obter um visto de turismo de três meses, que lhe permitiria entrar legalmente em Portugal. Conseguiu-o em Abril, mas não tinha ainda dinheiro para o voo, razão pela qual acabaria por sair do país apenas dois meses depois. "Fiquei desesperada, mas acabei por vender alguns dos meus bens e arranjar dinheiro".

A chegada à Europa das desilusões
Nairobi, Cairo, Lisboa. Susan deixou a África do seu coração e aterrou em Lisboa. Durante o voo conheceu um guineense, que acabaria por ajudá-la, dando-lhe guarida no apartamento que partilhava com outros dois homens. Susan passou um mês nessa casa, cozinhando e tratando da lida doméstica. Ao mesmo tempo, foi tentando aprender umas palavras de português. Hoje, frequenta as aulas gratuitas do Conselho Português para os Refugiados (CPR) e já consegue exprimir-se em situações básicas. "A língua abriu-me os olhos. Sem comunicação não há vida", diz.

Durante um dos seus passeios pela capital, Deus enviou-lhe "um sinal": uma missionária brasileira que lhe indicou a família de uma outra religiosa angolana, com quem poderia ir viver. É com essa família da Amadora que Susan vive actualmente. No entanto, embora consciente da sorte que teve desde que está em Portugal, Susan, agora com 39 anos, continua a estar dependente da ajuda dos outros e sente que perdeu a autonomia e a liberdade. "Não tenho dinheiro para comprar as coisas que quero. Preciso de comer, não durmo onde me apetece dormir, tomo banho quando há gás e quando não há não tomo, só posso sair de casa se tiver uma razão. Não sou livre de todo". É como se não existisse, sem trabalho, ilegal e sem saber o que esperar de uma justiça que tarda em anunciar o veredicto final.

E se a expulsarem? Abana a cabeça como que a afastar esse pensamento. Encolhe os ombros entre a opção de regressar, de ficar ilegal em Portugal ou de tentar obter asilo noutro país.

À excepção do CPR, das autoridades portuguesas, do namorado sul-africano que conheceu em Lisboa e, mais recentemente, do PUBLICO.PT, Susan não partilhou a sua história com ninguém, nem com as pessoas com quem vive.

Vários meses e duas recusas de asilo depois, Susan mantém a determinação e diz que não lamenta ter deixado o Quénia, porque conseguiu "o primeiro objectivo" que se propôs atingir: escapar à MGF. "Tenho esperança e fé em que vou conseguir o segundo: ficar em Portugal, em situação legal". Regressar? "Sou africana, gosto do meu país, a minha família está lá, a nossa casa é sempre a nossa casa, mas não posso voltar".

Ao mesmo tempo, é com mágoa e desilusão que fala das decisões negativas do SEF — onde foi "obrigada" a contar a sua história a um homem — e do CNR e não consegue entender como é que na Europa "onde se respeitam os direitos humanos" não acreditam no seu relato. Durante este tempo de espera tem procurado as razões. "Será porque a minha pele é negra? Não terei eu direito a conviver com gente branca? Será porque não falo português? Se fosse da Guiné-Bissau, [as autoridades] fariam um esforço maior para me compreender? Questiono-me, mas não tenho a resposta ainda".

De qualquer forma, os portugueses não sabem "o real significado da mutilação". "Se não se comer o gelado, não se pode saber se é bom. Eu já provei e digo que é bom. Quando conto a história da minha vida, sei do que estou a falar", compara. E resolveu contá-la, porque "a opinião pública pode mudar a lei, porque o povo é o Governo"



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