sexta-feira, novembro 21, 2003
queria de ti um país de bondade e de bruma/queria de ti o mar de uma rosa de espuma - Mário Cesariny
Ainda no mesmo Blog, "Stand-Up Tragedy", Tiago Rodrigues, escreve um texto sobre o espectáculo que vai estrear no Maria Matos. Este Blog é OBRIGATÓRIO! O espectáculo também:
"Ser fiel é difícil
Desde que conheci a companhia belga STAN, numa workshop no CCB em 97, as poucas opiniões que eu tinha sobre o teatro que via e queria fazer ganharam outra dimensão.
Na altura, tinha cumprido o primeiro ano de formação de actor no Conservatório. Ainda não tinha tido desilusões suficientes para procurar o meu próprio caminho nesta coisa de construir espectáculos. As desilusões viriam rapidamente, apenas a servir para reforçar aquilo que, nesse Verão de 97, aprendi com os «meus» belgas. Fazer teatro não é diferente de viver. Ou seja, os princípios que aplicamos à nossa vida devem manter-se na forma como criamos espectáculos. Se procuramos ser honestos, justos e tolerantes no nosso quotidiano, isso deve ser transportado para a sala de teatro.
Os STAN trabalham sem encenador e sem encenação. Em todos os espectáculos que fiz com essa companhia nos últimos cinco anos, a primeira vez que «fiz» teatro foi no dia da estreia. Costumamos trabalhar cinco semanas à volta da mesa, lendo, discutindo tudo, traduzindo, corrigindo, memorizando e debitando texto decorado. À volta da mesa e à volta do texto, decidimos o cenário, as luzes, o som. Levantamo-nos da mesa um par de dias antes para ir ver como está a correr a montagem no palco e dar algumas opiniões. Nunca ensaiamos no palco. A primeira vez em que subimos realmente ao palco é na noite de estreia.
Na estreia, sabemos exactamente o espectáculo que queremos fazer, mas ainda não o fizemos uma única vez. Na estreia, conhecemos as opiniões de todos (às vezes divergentes) sobre as personagens e o texto, mas não sabemos a forma como cada um dos actores vai desempenhar o seu papel. É uma noite de descoberta e o início de um outro ciclo no trabalho. Todas as tardes, antes do espectáculo, discutimos o desempenho da noite anterior e deixamos que essa discussão continue em palco nessa noite.
O público desempenha um papel fundamental neste tipo de trabalho. Uma vez que, apesar de existirem acordos acerca da dramaturgia do espectáculo, este não foi fixado e marcado, a reacção do público também condiciona o desenrolar do espectáculo. O público é um dos protagonistas neste tipo de teatro.
O que procuramos é a autenticidade de uma conversa entre actores e dos actores com o público que está a acontecer realmente naquela noite. O que procuramos é a necessidade de inventar todas as noites e, correndo o risco da imperfeição e do erro, revelar as pessoas que estão em palco enquanto se revelam as personagens. As possibilidades são imensas, mas à medida que o espectáculo vai «rodando», vai ganhando uma forma e quase se auto-encena. Existe o perigo da mecanização e do aborrecimento, que é exacatamente o que evitamos ao não ensaiar e ao não marcar absolutamente nada.
Quando isto acontece, é altura de voltar ao texto. No texto não há improviso. O texto é cumprido rigorosamente para que tudo o resto possa ser improvisado, num jogo onde a liberdade do actor é proporcional à sua responsabilidade. Se o espectáculo começa a deixar de surpreender os actores que o interpretam, deixa de ser vivo. Nessa altura voltamos ao texto e tentamos reinventar tudo de novo. Há um «jogo» onde o actor é, não só criador do espectáculo, como continua a ser criador em palco e até ao fim da carreira de cada peça.
O essencial é o que acontece "aqui e agora". O "aqui e agora" é o único trunfo que o teatro tem na manga, comparado com outra formas artísticas. Não é a ilusão. A ilusão perfeita é o cinema. O teatro é o facto de gente se ter deslocado naquela noite àquele sítio para ver e ouvir aquelas pessoas. O teatro é o que acontece quando estas condições se reúnem. O que o teatro deve procurar veicular a sua mensagem concentrando-se naquilo que o torna único: o facto de acontecer "aqui e agora". A possibilidade do erro. A possibilidade de ser autêntico.
Estes são, em traços largos, os princípios do trabalho que tenho desenvolvido com os STAN em vários países por onde passamos. Isto é o que eu faço enquanto actor. É o que eu quero fazer com este STAND-UP TRAGEDY, que me traz de volta aos palcos portugueses. Faltam 10 dias para a estreia. Tinha vontade de trair os meus princípios e marcar tudo, ensaiar muito, criar imensas regras que me permitissem a segurança de fazer a mesma coisa com a mesma eficácia todas as noites. É uma vontade que surge do medo de falhar. Sobretudo porque estou sozinho em palco.
Envio uma mensagem ao Frank, actor dos STAN, que já fez vários monólogos desta forma. O espectáculo "Questionism" é um monólogo deste actor dos STAN, que provavelmente virá a Portugal para o ano e que ganhou o prémio de melhor espectáculo de teatro da Bélgica e Holanda este ano. Na mensagem, digo ao Frank que estou borrado. Pergunto-lhe o que devo fazer. Ele responde passados 10 segundos, como se desde sempre esperasse a minha mensagem.
"I know what you mean. Courage."
O Frank não me diz o que fazer. Diz-me que sabe o que é ter medo antes da estreia dum monólogo. Dá-me coragem. Mas não me diz o que fazer. É o mesmo que dizer-me que devo apenas... fazer. Daqui a 10 dias, na noite da estreia, não sei o que vai acontecer. Faz parte de ser fiel aos meus princípios. Não sei se vais ser bom ou mau. Sei que vou ser eu.
Ainda no mesmo Blog, "Stand-Up Tragedy", Tiago Rodrigues, escreve um texto sobre o espectáculo que vai estrear no Maria Matos. Este Blog é OBRIGATÓRIO! O espectáculo também:
"Ser fiel é difícil
Desde que conheci a companhia belga STAN, numa workshop no CCB em 97, as poucas opiniões que eu tinha sobre o teatro que via e queria fazer ganharam outra dimensão.
Na altura, tinha cumprido o primeiro ano de formação de actor no Conservatório. Ainda não tinha tido desilusões suficientes para procurar o meu próprio caminho nesta coisa de construir espectáculos. As desilusões viriam rapidamente, apenas a servir para reforçar aquilo que, nesse Verão de 97, aprendi com os «meus» belgas. Fazer teatro não é diferente de viver. Ou seja, os princípios que aplicamos à nossa vida devem manter-se na forma como criamos espectáculos. Se procuramos ser honestos, justos e tolerantes no nosso quotidiano, isso deve ser transportado para a sala de teatro.
Os STAN trabalham sem encenador e sem encenação. Em todos os espectáculos que fiz com essa companhia nos últimos cinco anos, a primeira vez que «fiz» teatro foi no dia da estreia. Costumamos trabalhar cinco semanas à volta da mesa, lendo, discutindo tudo, traduzindo, corrigindo, memorizando e debitando texto decorado. À volta da mesa e à volta do texto, decidimos o cenário, as luzes, o som. Levantamo-nos da mesa um par de dias antes para ir ver como está a correr a montagem no palco e dar algumas opiniões. Nunca ensaiamos no palco. A primeira vez em que subimos realmente ao palco é na noite de estreia.
Na estreia, sabemos exactamente o espectáculo que queremos fazer, mas ainda não o fizemos uma única vez. Na estreia, conhecemos as opiniões de todos (às vezes divergentes) sobre as personagens e o texto, mas não sabemos a forma como cada um dos actores vai desempenhar o seu papel. É uma noite de descoberta e o início de um outro ciclo no trabalho. Todas as tardes, antes do espectáculo, discutimos o desempenho da noite anterior e deixamos que essa discussão continue em palco nessa noite.
O público desempenha um papel fundamental neste tipo de trabalho. Uma vez que, apesar de existirem acordos acerca da dramaturgia do espectáculo, este não foi fixado e marcado, a reacção do público também condiciona o desenrolar do espectáculo. O público é um dos protagonistas neste tipo de teatro.
O que procuramos é a autenticidade de uma conversa entre actores e dos actores com o público que está a acontecer realmente naquela noite. O que procuramos é a necessidade de inventar todas as noites e, correndo o risco da imperfeição e do erro, revelar as pessoas que estão em palco enquanto se revelam as personagens. As possibilidades são imensas, mas à medida que o espectáculo vai «rodando», vai ganhando uma forma e quase se auto-encena. Existe o perigo da mecanização e do aborrecimento, que é exacatamente o que evitamos ao não ensaiar e ao não marcar absolutamente nada.
Quando isto acontece, é altura de voltar ao texto. No texto não há improviso. O texto é cumprido rigorosamente para que tudo o resto possa ser improvisado, num jogo onde a liberdade do actor é proporcional à sua responsabilidade. Se o espectáculo começa a deixar de surpreender os actores que o interpretam, deixa de ser vivo. Nessa altura voltamos ao texto e tentamos reinventar tudo de novo. Há um «jogo» onde o actor é, não só criador do espectáculo, como continua a ser criador em palco e até ao fim da carreira de cada peça.
O essencial é o que acontece "aqui e agora". O "aqui e agora" é o único trunfo que o teatro tem na manga, comparado com outra formas artísticas. Não é a ilusão. A ilusão perfeita é o cinema. O teatro é o facto de gente se ter deslocado naquela noite àquele sítio para ver e ouvir aquelas pessoas. O teatro é o que acontece quando estas condições se reúnem. O que o teatro deve procurar veicular a sua mensagem concentrando-se naquilo que o torna único: o facto de acontecer "aqui e agora". A possibilidade do erro. A possibilidade de ser autêntico.
Estes são, em traços largos, os princípios do trabalho que tenho desenvolvido com os STAN em vários países por onde passamos. Isto é o que eu faço enquanto actor. É o que eu quero fazer com este STAND-UP TRAGEDY, que me traz de volta aos palcos portugueses. Faltam 10 dias para a estreia. Tinha vontade de trair os meus princípios e marcar tudo, ensaiar muito, criar imensas regras que me permitissem a segurança de fazer a mesma coisa com a mesma eficácia todas as noites. É uma vontade que surge do medo de falhar. Sobretudo porque estou sozinho em palco.
Envio uma mensagem ao Frank, actor dos STAN, que já fez vários monólogos desta forma. O espectáculo "Questionism" é um monólogo deste actor dos STAN, que provavelmente virá a Portugal para o ano e que ganhou o prémio de melhor espectáculo de teatro da Bélgica e Holanda este ano. Na mensagem, digo ao Frank que estou borrado. Pergunto-lhe o que devo fazer. Ele responde passados 10 segundos, como se desde sempre esperasse a minha mensagem.
"I know what you mean. Courage."
O Frank não me diz o que fazer. Diz-me que sabe o que é ter medo antes da estreia dum monólogo. Dá-me coragem. Mas não me diz o que fazer. É o mesmo que dizer-me que devo apenas... fazer. Daqui a 10 dias, na noite da estreia, não sei o que vai acontecer. Faz parte de ser fiel aos meus princípios. Não sei se vais ser bom ou mau. Sei que vou ser eu.