sexta-feira, outubro 31, 2003
Cenas 1, 2 e 3. Lisboa
Cena 1
O homem sai do escritório. Está a chover muito. Muito. E faz vento. Na noite anterior tinha mudado a hora. Chove muito. Muito. Faz vento e como atrasou a hora está muito escuro. O rapaz anda. O passeio escorrega-lhe debaixo dos pés. Anda sobre as águas naquele regresso a casa. Não tem energia para abrir o guarda-chuva. Tenta entrar num café e bebê-lo, ao café inteiro, depressa. Não consegue. Numa esquina perde o norte. Perde-se. Não sabe onde está. São muito simples os maiores tormentos. Os maiores tormentos são muito, muito simples. Ele não sabe onde está. Fica paralizado e quase em pânico. Vê mas não reconhece as coisas. Não olha. Ouve mas não identifica os sons. Não escuta. Encosta-se a um sinal de transito. A suar à chuva. Encharcado sussurra: "Amor, leva-me para casa."
Cena 2
Tem sobre a secretária um folheto. Na capa a fotografia de uma escultura em pedra. Um pelicano ferindo o peito para salvar os seus filhos da fome. É um guia turístico da cidade onde vive. A fotografia saiu dos seus olhos, há muitos anos, anos demais. Hoje encontrou um desses folhetos dentro de um livro e chorou. Évora tão longe. Sangrando do peito da ave.
Cena 3
OS MANEQUINS DE MUNIQUE - Sylvia Plath
(Lisboa vista pelas janelas de um sotão do Atheneu Comercial de Lisboa)
A perfeição é terrivel, não pode ter filhos.
Fria como a respiração da neve, põe um tampão no útero
Onde os teixos sopram como hidras,
A árvore da vida e a árvore da vida.
A libertar as suas luas, mês após mês, sem nenhum objectivo.
O fluxo do sangue é o fluxo do amor,
O sacrifício absoluto.
Quer dizer não há¡ outro ídolo senão eu,
Eu e tu.
Assim, no seu sulfuroso encanto, nos meus sorrisos
Estes manequins dormitam esta noite
Em munique, a morge que fica entre Paris e Roma,
Nus e carecas nos seus casacos de peles,
Chupa-chupas de laranja em pauzinhos de prata
Intoleráveis, ocas cabeças.
A neve deixa cair os seus bocados de escuridão,
Não se vê ninguém. Nos hoteis
Mãos estarão a pôr os sapatos
À porta dos quartos para que os engraxem com carbono
Neles hão-de amanhã entrar enormes pés.
Ó a domesticidade destas montras,
As rendas de bébé, as folhas verdes de açúcar,
Alemães toscos a passar pelo sono metidos nos seus stolz largos
E os telefones pretos no descanso
A brilhar
A brilhar e digerir
Emudecidos. A neve não tem voz.
O homem sai do escritório. Está a chover muito. Muito. E faz vento. Na noite anterior tinha mudado a hora. Chove muito. Muito. Faz vento e como atrasou a hora está muito escuro. O rapaz anda. O passeio escorrega-lhe debaixo dos pés. Anda sobre as águas naquele regresso a casa. Não tem energia para abrir o guarda-chuva. Tenta entrar num café e bebê-lo, ao café inteiro, depressa. Não consegue. Numa esquina perde o norte. Perde-se. Não sabe onde está. São muito simples os maiores tormentos. Os maiores tormentos são muito, muito simples. Ele não sabe onde está. Fica paralizado e quase em pânico. Vê mas não reconhece as coisas. Não olha. Ouve mas não identifica os sons. Não escuta. Encosta-se a um sinal de transito. A suar à chuva. Encharcado sussurra: "Amor, leva-me para casa."
Cena 2
Tem sobre a secretária um folheto. Na capa a fotografia de uma escultura em pedra. Um pelicano ferindo o peito para salvar os seus filhos da fome. É um guia turístico da cidade onde vive. A fotografia saiu dos seus olhos, há muitos anos, anos demais. Hoje encontrou um desses folhetos dentro de um livro e chorou. Évora tão longe. Sangrando do peito da ave.
Cena 3
OS MANEQUINS DE MUNIQUE - Sylvia Plath
(Lisboa vista pelas janelas de um sotão do Atheneu Comercial de Lisboa)
A perfeição é terrivel, não pode ter filhos.
Fria como a respiração da neve, põe um tampão no útero
Onde os teixos sopram como hidras,
A árvore da vida e a árvore da vida.
A libertar as suas luas, mês após mês, sem nenhum objectivo.
O fluxo do sangue é o fluxo do amor,
O sacrifício absoluto.
Quer dizer não há¡ outro ídolo senão eu,
Eu e tu.
Assim, no seu sulfuroso encanto, nos meus sorrisos
Estes manequins dormitam esta noite
Em munique, a morge que fica entre Paris e Roma,
Nus e carecas nos seus casacos de peles,
Chupa-chupas de laranja em pauzinhos de prata
Intoleráveis, ocas cabeças.
A neve deixa cair os seus bocados de escuridão,
Não se vê ninguém. Nos hoteis
Mãos estarão a pôr os sapatos
À porta dos quartos para que os engraxem com carbono
Neles hão-de amanhã entrar enormes pés.
Ó a domesticidade destas montras,
As rendas de bébé, as folhas verdes de açúcar,
Alemães toscos a passar pelo sono metidos nos seus stolz largos
E os telefones pretos no descanso
A brilhar
A brilhar e digerir
Emudecidos. A neve não tem voz.