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segunda-feira, fevereiro 28, 2005

atlas amarelo para um actor # 40 

infinitivo dizer escrever fazer ver particípio dito escrito feito visto infinitivo pôr abrir cobrir vir particípio posto aberto coberto vindo afirmativo vem venha venhamos venham negativo não venhas não venha não venhamos não venhais não venham lágrimas –

atlas amarelo para um actor # 39 

não estou ainda completamente gasto enquanto a minha máscara falar por mim poderei anunciar que um dia colhi alfazemas e tomei banhos quentes e vi a lua o fim chegará quando a máscara apodrecer então poderão queimar-me ou congelar-me até mesmo entregar-me ao sol é como quiserem faltam cinco minutos para ser encontrado morto depois logo se vê –

atlas amarelo para um actor # 38 

a tua colecção de minerais é um tesouro imenso guarda-a bem assim como já fazes junto à cabeceira da cama cada uma daquelas pedras é-te dedicada e tu és dedicado a cada uma delas se todos os seres do mundo possuíssem uma colecção de rochas e minerais assim todo o globo seria invadido por uma energia contínua de roseiras de todas as cores e o coração dos animais bateria num aceleramento ímpar e todo o cosmos bateria como o coração dos animais –

atlas amarelo para um actor # 37 

tinha sempre as mãos quentes –

atlas amarelo para um actor # 36 

deram-me um teatro e nem me consegui rir mas antes que se inicie o primeiro espectáculo cobrirei todo o palco de cravos é tudo o que tenho para vos oferendar –

atlas amarelo para um actor # 35 

és uma actriz desprezível és uma actriz de supermercado és uma actriz sem ridículo és uma actriz com um furo no peito –

atlas amarelo para um actor # 34 

sei que aí estás anjo estou em vantagem sobre ti tu não conheces uma fagulha do meu ser e eu vejo-te radiograficamente desde o teu nascimento nunca toquei o teu corpo já não aguento mais não te peço que compreendas mas não poderei continuar a proteger-te voa agora por ti acredita que estou exausto –

atlas amarelo para um actor # 33 

não sabemos o que é o sofrimento mas agimos como se tal soubéssemos choramos gritamos insultamos observo com os olhos de vidro que me emprestaram o cavalo do senhor j ali em frente no picadeiro e sinto uma vontade extravagante de voar desta janela e beijá-lo agradecendo-lhe a sua indemne dignidade –

atlas amarelo para um actor # 32 

quis ser pintor e foi para umas escolas de belas artes onde aprendeu tudo quando acabou o curso resolveu que já era pintor passou dois anos a preparar uma tela com todos os preceitos científicos que tinha aprendido afinal preparar uma tela não era uma coisa qualquer mas a base da eternidade da sua obra –

atlas amarelo para um actor # 31 

«sempre te amei e tu nunca o soubeste merecer» depois acendeu uma vela e queimou o papel entre a meia noite e as seis da manhã escreveu mais de vinte bilhetes no género queria apagar-se e deixar uma frase à altura às oito e trinta vestiu ao fato azul a gravata amarela e foi para o banco –

domingo, fevereiro 27, 2005

atlas amarelo para um actor # 30 

para continuares a ser um profissional o ideal seria amputar uma das pernas e amarrá-la à cabecinha o único inconveniente seria a inutilidade do monociclo cuja venda se imporia mas como queres ser um profissional estás certamente disposto a tudo –

atlas amarelo para um actor # 29 

vais para a praça principal da tua cidazinha e cospes fogo enquanto jogas com malabares incendiados o que não percebes é que quem te cospe como fogo enquanto joga com malabares incendiados é a praça da tua cidadezinha –

atlas amarelo para um actor # 28 

sou uma blenda de cor amarela castanha verde vermelho-escura ou mesmo preta às vezes tenho faces curvas em massas granulosas e compactas sofro de uma clivagem perfeita em seis direcções fractura concoidal muito frequente entre as da minha espécie –

atlas amarelo para um actor # 27 

mais imbecil que o teatro de rua só o teatro nas escolas mais imbecil que o teatro nas escolas só o teatro nas prisões mais imbecil que o teatro nas prisões só o teatro no teatro mais imbecil que o teatro no teatro é o teatro imbecil –

atlas amarelo para um actor # 26 

detestava ser espelho e ter todos os dias uma alice qualquer a querer furar-me as entranhas com a ideia fixa de que há qualquer coisa oculta do outro lado detestava ser um roupeiro sem fundo por onde um rapazinho órfão passa diariamente e sem pedir licença como acesso a um reino mágico a que dá o pomposo nome de narnia o que gostava mesmo era ser uma alice qualquer e em frente de um espelho estripar-lhe o ventre com a ideia fixa que há qualquer coisa de oculto do outro lado e ainda gostava mais de ser um menino órfão e saber entrar pelo fundo de um roupeiro num universo astral bastar-me-ia ter acesso a um banal cerejal e já tudo teria valido a pena –

atlas amarelo para um actor # 25 

os dragões podem ajudar muito um escritor principalmente porque lhe roubam as canetas e os anéis os dragões roubam tudo aliás na presença de um dragão o escritor fica a sós com o vácuo dos vocábulos –

atlas amarelo para um actor # 24 

a gramática é a matemática da poética a jardinagem a medicina da ética –

atlas amarelo para um actor # 23 

o poder de um sítio mede-se pelo tamanho das asas dos mosquitos se os mosquitos são pequenos minúsculos mesmo daqueles que se agarram aos balões das lâmpadas é porque se trata de um sítio insignificante se os mosquitos têm grandes asas em forma de gadanha e picam o voo direitos aos olhos humanos não há dúvida estamos perante uma gloriosa basílica de antiquíssimas energias –

atlas amarelo para um actor # 22 

quando te conheci ainda eras actor claro que ninguém sabe o que é um actor então como posso eu dizer que tu eras um actor talvez fosse da transparência com que os teus lábios se abriam em ô ou a forma pueril como as mãos te saiam como cabeças de monge das mangas do sobretudo aos quadrados que usavas nessa altura –

atlas amarelo para um actor # 21 

não creio na ordem natural das coisas creio na ordem alfabética talco tenantita tetraedrita tilito titania topázio torbermita traquite travertino tufo turfa turmalina turquesa rejalgar riolito rodocrosita rodonita rubelita rubi rútilo wavelite wulfenita zeólitas zircão –

atlas amarelo para um actor # 21 

não creio na ordem natural das coisas creio na ordem alfabética talco tenantita tetraedrita tilito titania topázio torbermita traquite travertino tufo turfa turmalina turquesa rejalgar riolito rodocrosita rodonita rubelita rubi rútilo wavelite wulfenita zeólitas zircão –

atlas amarelo para um actor # 21 

não creio na ordem natural das coisas creio na ordem alfabética talco tenantita tetraedrita tilito titania topázio torbermita traquite travertino tufo turfa turmalina turquesa rejalgar riolito rodocrosita rodonita rubelita rubi rútilo wavelite wulfenita zeólitas zircão –

sábado, fevereiro 26, 2005

atlas amarelo para um actor # 20 

não nomeies não me nomeies os nomes enchem demasiado os intestinos se me chamas o inchaço abdominal provocará as mais ensandecedoras dores operáticas eis o cavaleiro e o seu corcel a lua o elmo os cavaleiros de patas lusitanas sabem que os nomes bloqueiam os cascos do elenco ainda para mais parte hoje para a guerra santa –

atlas amarelo para um actor # 19 

ou a vertigem cede e os membros se reanimam ou os cães comem-te ou te pões no escuro ou voltas para a colmeia à combustão à escrita ao temor –

atlas amarelo para um actor # 18 

toca-me o peito e sente as artérias repousa não é assim tão repugnante beijar um corpo frio –

atlas amarelo para um actor # 17 

despe-se começando pela camisola de lã depois tira a camisa e finalmente a t-shirt interior fica assim em tronco nu em frente do espelho com a cara pálida e os braços caídos ao longo do corpo meia hora talvez desaperta o cinto deixa cair as calças mais meia hora e nunca tira as cuecas todos os outros actores preparam-se em menos de quinze minutos ele não tem energia possível nos ossos para tamanha rapidez é nessa altura de quase nudez que sente muito frio e se sente a desmaiar –

atlas amarelo para um actor # 16 

todas as manhãs vejo passar um batalhão de varredeiras politicamente vermelhas preocupadissímas em retirar do chão folhas de plátano a população deste planeta ilhéu reclama constantemente contra as folhas de plátano amedrontadas com a possibilidade do nascimento clandestino de novas formas de vida –

atlas amarelo para um actor # 15 

fala-se do rapto de um tigre alguém entrou na jaula e levou-o presume-se que lhe tenha prometido uma considerável quantia de dentes de ouro através de um pequeno papel encontrado do chão da jaula manuscrito pelo leão a polícia concluiu que o principal suspeito é um conhecidografólogo e advogado em lisboa que há muito anunciava a sua vontade de revestir o chão do seu consultório com um tapete de aspecto tigrado –

atlas amarelo para um actor # 14 

porque estão todos a olhar para mim estou aqui a trabalhar no meu buraco e ninguém respeita a minha privacidade tenho frio arrepios concêntricos cavo este chão de tábuas e terra dorida tenho trinta e cinco anos e desde os três que encho este depósito com gemas lápis-lazúli e nunca ninguém e ainda nenhum encenador foi capaz de me dizer para que serve este cofre em pleno teatro aviso-vos que trago comigo sempre sempre uma pistola –

atlas amarelo para um actor # 13 

plantei uma avenca uma península de trastes onde os músicos ensaiam taciturnos embebidos em álcool cheira ordinariamente a hortelã –

atlas amarelo para um actor # 12 

nunca te tive e desde que estou preso nesta pedreira de ametistas que me vem à boca o teu sabor a limão verde que me faz querer-te mais deus tem um motor fraco pobre máquina de cena –

atlas amarelo para um actor # 11 

sou uma raiz clarividente que se movimenta por si num oceano de carne uma espécie rara de jibóia branca dos himalaias se tivesse tendências humanas chamar-me-ia heliotrópio finalmente acenderam as luzes dos camarins e já me posso pintar –

atlas amarelo para um actor # 10 

abre e fecha as tuas mãos mãezinha abre e fecha os dedos mamã estou à espera olha que como eu a sopa ou espeto uma vara na paisagem respira para dentro e para fora há tanta gente que precisa da dança da tua cabeça –

atlas amarelo para um actor # 9 

enquanto aqui estou sentado no palco e os espectadores entram um a um como cegos pela mão das arrumadoras golpeio o peito com uma foice pensei que os faria pensar hesitar gritar de pânico mas como a plateia tem lugares marcados e o espectáculo ainda não começou –

atlas amarelo para um actor # 8 

escorre-me pelas pernas abaixo todo o génio com que nasci arde sinto-me um boi a contemplar as fezes pensando que são entusiásticas maçãs –

atlas amarelo para um actor # 7 

tocas-me entre líquidos fétidos abres a boca e inertes permanecem os dentes e as fibras das pálpebras a voz agarra a morte das pequenas existências felizes queres iluminar um castelo e acendes um fósforo –

atlas amarelo para um actor # 6 

dizer que me amas é tudo o que o sol não quer os patos honram a sua lealdade para com as penas e as patas tu és um inconsequente soco no estômago escrever na estrada traz-me sempre esta sensação de me estar a aproximar de algum sítio –

sexta-feira, fevereiro 25, 2005

atlas amarelo para um actor # 5 

organizaram os muros organizaram os castanheiros-da-índia e o canto dos melros organizaram tudo e tudo é apenas um retrato organizado do que foi só a arquitectura parece florescer por dentro dos ossos não há vida celeste –

atlas amarelo para um actor # 4 

tens tempo para sonhar perguntou-me o topázio que sim que tenho três horas por noite não tenho é tempo para o sono e o topázio não respondeu nem à direita nem a trás ficámos à porta do livro continuamente presos à circulação extenuante das rodas de uma bicicleta sou um retábulo insone –

atlas amarelo para um actor # 3 

este lago sempre verde a tentar engolir os peixes quando não consigo pensar também engulo os peixes vermelhos dos lagos verdes numa colina –

atlas amarelo para um actor # 2 

uma longa espera e tu porque choras as luzes do palco impedem a visão dos pés e os pés não se mexem quem terá posto no chão estas pedras de sal transformo-me num cardo e mato-te a esta hora a minha idade senta-se vejo o público como folhas secas ponho-me a vomitar seixos cenográfricos gosto muito de ti pai os seixos caiem no sal da entrada e um gás faz rodar um triciclo nada sei fazer de mais puro se cantasse estaria irreparavelmente calmo –

quinta-feira, fevereiro 24, 2005

atlas amarelo para um actor # 1 

um pente e um macaco e a luz acende-se na terra engole-se o calendário como se rosas se desprendessem das mãos procura-me neste sol de areia e serei mais branco trago na mão uma capa imaginária de princesa e dentes-de-leão no sangue-negro com que te beijo minha montanha –

metrónomo # 40 

a febre que sinto é febre perfeita
a abertura de um poço de instantes felizes
afundados numa terra virgem
escondo a localização deste precioso cofre
não porque receie partilhar este sorriso
mas porque sem esta febre/aos olhos dos outros/
este poço de enverdecer não passaria da visão
banal de um esquife
não sou feliz nem liberto
mas a explodir na ponta dos dedos tenho o segredo
de um mel fervente pintado de glicínias
com corolas de bronze e trepadeiras selvagens

metrónomo # 39 

6.30
o gato castanho e o tejo/
submersa nesse gigante oceano androceu
a magnólia fulva de um fruto responde-me
e faz-me sentir uma felicidade carregada de um
sangue espesso – uma cobra puxa-me pelas ancas
qualquer coisa de odorífero serpenteia
na minha coluna vertebral até à cúspide craniana
e nada tenho a recear desta minha existência mamífera
não há parede ou amor desfeito que me atinja a pele
6.30
o gato castanho imprime ao caminhar os sinais
clandestinos de uma aura aquosa e colorida
escoando-se pelos pulmões – pelas ramagens do abdómen
não há temor possível neste mergulho profundo de inverno –
tudo se concentra na vontade de um gatonavio à escuta

metrónomo # 38 

dantes procurava-te – escrevia-te
havia entre nós uma abundância que ninguém
sabia destruir
falávamos de jardins
de túlipas
de lugares próximos onde tínhamos estado em crianças
um dia o mapa do nosso reencontro
apagou-se e os jardins impludiram
como se uma garganta de poeiras se tivesse aberto
e engolido o nosso estar
este é o poema final – contigo morreram
as túlipas / no
entanto –
enquanto nos nossos corpos existir
esta configuração humana
será impossível ignorar que foi entre nós que desabrochou
a primeira rosa do mundo

metrónomo # 37 

não sei se terei tempo de te ver crescer
minha pequena cerejeira
e é por isso que estremeço na tua ausência
como um corpo abatido pela impotência
no entanto hás-de crescer e ter folhas pontiagudas
e bagas doces e um tronco
ainda que desapareça alguém te verá esplêndida
e vermelha – beberás gotas de chuva
e eu terei sido apenas a mão que te tocou a raiz
uma memória escorrendo – um laço

quarta-feira, fevereiro 23, 2005

metrónomo # 36 

entre mim e o saber adormecer
apenas uma escada crepuscular
cada degrau é um intransponível degrau
entre mim e o saber acordar
apenas uma esmeralda – um intransponível compasso

metrónomo # 35 

eu regresso e no peso desabrido da chegada
o sorriso louco dos pés
o berro excêntrico dos corvos-marinhos-de-faces-brancas
sou como um ovo em exacta combustão
fugindo dos espelhos e das ondas
que o estômago expele pelos poros dos flancos
devastador o espaço dos astros que observa os
movimentos particulares do amor proibido dos
ciprestes com as suas lápides –
visionárias aves sub-terrestres
ardendo como tochas/ponteiros

eu regresso
e durmo
e os dias hão-de passar como grandes mastros
prateados no mar
até que as mães reabsorvam pelo ventre os filhos
que deitaram à morte
e engulam a placenta – a seiva – o esplendor
do sangue que se exalta nelas
no parto

metrónomo # 34 

era uma estante de mogno vermelho
– meu universo de coisas sublimes –
entre livros a deusa indiana de marfim
uma afiada espada com histórias de guerra
e uma caveira/escondia-se o antigo metrónomo do meu avô
que nunca foi músico – nem nunca quis ser nada
já não existe a estante
nem existem os livros
nem a deusa
[a espada perdeu a memória das vidas que tirou]
e como o meu avô o metrónomo desfez-se de cansaço
à imagem da caveira vendida num antiquário para pagar dívidas
mas o meu coração continua irreversivelmente dependente
da cadência misteriosa daquele pêndulo invertido

rosacordotejo 

rosacordotejo

metrónomo # 33 

espero que a partir de hoje me possa desenvolver como um castanheiro
estou
finalmente
preparado para todas as metamorfoses
parto deste agregado celular sem memória
serei um prodigioso castanheiro urbano
anseio o momento esplêndido do nascimento
da ramagem cúpular que me substituirá
a cabeça –
folhas que ponham cobro à electricidade das sinapses/
verdes e castanhos que destruam o tecido que amarrara
a massa encefálica que ainda contenho intra-ossos
organizei minuciosamente esta encenação
como espero – assumirei – a partir de hoje
a condição de uma assombrosa majestade

metrónomo # 32 

«os chineses voltaram a domesticar pássaros»
numa fotografia de jornal um colibri
toma no bico uma semente redonda
das mãos chinesas de uma mulher
é uma imagem semelhante à do toque
dos indicadores de deus e do homem
que michelangelo pintou
enquanto o colibri agarra a semente as assas
batem violentamente garantindo
a imobilidade ventosa de uma paragem no espaço
?estará domesticada uma ave em pleno voo
ou é a mão da mulher
estacada numa incerta massa de carne
que se encontra acorrentada?
e a semente que seiva transportará no seu microscópico útero?
? qual é o recluso – qual o carcereiro?

metrónomo # 31 

repara na espessa muralha que nos separa
cavada no que fomos
lá fora uma laranjeira suporta corajosa a força da culpa
e as laranjas são como olhos insones
observando clarividentes esta pesarosa intranquilidade
que torna impossível o grito ou a mudez
entre nós e o tempo que já não temos
talvez pudesse ter-se aberto o sol de um piano ou uma chuva de
rosas
assusta-me mortalmente a frieza do nosso desconhecimento
e a forma como se adensa este nevoeiro
de pedra

apesar da noite
do gelo
e do temor
as gralhas da sé ainda estão acordadas e sobrevoam
a casa em frente
talvez procurem entre as telhas
o ouro com que iluminarão os insondáveis recantos onde se amam

terça-feira, fevereiro 22, 2005

metrónomo # 30 

a traqueia deformada na garganta na forma de uma rosa do deserto
é a já visível
metamorfose mineral
o nexo oculto que refulge no meu rosto – total
ausência de mecânica cerebral
em cada íntimo núcleo atómico das células
multiplicam-se as poeiras de uma nova e inesperada constelação
tenho em mim a planificação
exacta
de todo um imenso
novo
sistema lunar

metrónomo # 29 

évora – konzert für klavier und orchester
nr. 23 a – kv 488 / wolfgang amadeus mozart / 1756 – 1791 / a janela
é a mesma a rua repete-se e no negro
intransponível deste céu fechado a visão alucinante
da copa densa de ornamentos azuis da basílica

konzert [00.00h]:

o vento traz da planície o frio e a imobilidade do trigo
nas ruas a solidão toca o fio
de estrelas cortantes que nos contemplam


klavier [1.00h]:

no hospital uma mulher gorda
é tecnicamente preparada para dar à luz
agoniada tem vergonha de vomitar

orchester [2.00h]:

treze monges cartuxos
levantar-se-ão das camas de madeira
vestirão os hábitos brancos/as sandálias escuras de couro
e subirão encarapuçados até ao coro da igreja
para recitar orações que se propagarão inaudíveis durante séculos
(repetirão o ritual de quatro em quatro horas
até que os seus cadáveres sejam
guardados – na horta – depois de lavados)


w.a.m. [4.30h]:

numa casa de tectos baixos
um homem fumará um cigarro às escuras –
antes da aurora
terá tomado a decisão
irreversível
de jamais voltar a mover-se
(1756 – 1791)

segunda-feira, fevereiro 21, 2005

metrónomo #28 

a menstruação dilata os vultos
das irmãs que nunca tive
como uma lua de azurite
observo-as/tomo-as – sei-me
invisível
compareço como um espírito invocado
e abraço-as invocadamente etéreo
o sangue principiou a sua viagem de iniciação
pelas suas jovens veias trans
lúcidas

há a iluminação quente de um cão
uma estátua vergada sobre os corpos
uma casincêndio que as liberta da infância

e à nossa volta o nevoeiro anuncia a proximidade das
grandes aparições
sei que nelas penetrará a candura dos lilases
e que o lado do corpo que em mim se agita
é o mais puro e musical
canto dos limões – as trovoadas
os raios que caem na superfície marítima
das florestas de algas

entre mim e as minhas irmãs
a roseira
de um lento desejo astral
exigente amor profundo
nada mais que aromas florescentes
inventando-se

domingo, fevereiro 20, 2005

em dia de eleições-exigência revolucionária 


metrónomo # 27 

das estátuas eu queria uma paixão prodigiosa
um movimento de tempestade/olhos vermelhos de aversão
dentes
sangue
quedas d'água – um amor-diamante
de argila e
granitos de sémen
a vida inteira –
ouro sem medida que me lacrassem os poros
em arrebatamentos de gesso
nunca adormecer – ser já morte
ter o mármore rosa das mãos imensas de david
sobre o corpo e sentir-me docemente esmagado

das estátuas eu queria tanto – um imenso desejo
de sucumbir

metrónomo # 26 

«demon est deus inverse» – pirogravado nas costas
– profética pele de omoplata – assim veio a criança ao mundo –
polyanthemus nasceu a arder numa tarde banal/sem sol/sem chuva/sem céu
uma tarde contentinha género dia de eleições
o médico entrou em pânico e fugiu à procura de enfermeiras que
uma vez presentes lavaram a criança com um jacto de extintor vermelho

a mãe limpou-se enojada numa bacia de esmalte
o pai estava a trabalhar e nunca chegou a saber disto
e ninguém reparou na inscrição que aliás não quer dizer nada

no mesmo dia partiram do oriente reis na quantidade de três
com presentes úteis para a criança
já em adulto polyanthemus tatuou na testa
a azul outra inscrição misteriosa
«in ri» [em riso]

para agradar a uma namorada que tinha e que a família nunca aceitou
morreu cedo polyanthemus
hoje
poucos se lembram do seu insólito nascimento

metrónomo # 25 

uma sombra sem voz
tão fria
num navio de fogos-fátuos
a noite – glicínias e comboios descarrilados
finalmente
o fundo do mar

sábado, fevereiro 19, 2005

metrónomo # 24 

emergiu a pedra porque esperávamos
grande oráculo feminino – alga matriz
útero transportador do trono do grande andrógino
abrir-se-á uma fenda masculina derramando sobre
as pernas todas as edificações
chegou o tempo das catedrais ao invés
entre nós levantou-se a montanha da negação – adventício
da morte eterna das pedras de toque

durante séculos sem princípio
os homens acreditaram que o segredo áureo
residia na construção/no arquitectónico simbolismo
do interior da terra – pois não é na pedra cúbica
que assenta a escada que leva ao topo do céu
nem há escada nem o céu tem cobro

comece pois a destruição das imagens cruciformes
que caia a casa e a oração
hoje é o dia da nossa primeira viagem
o dia novo
a nova rotação dos planetas
o fim dos eixos
é a hora violenta e amorosa em que a terra principiará
a sua combustão interna
polida e radical
redonda
que fará cair todos os castelos

definharão os ventres maternos
apodreçam os falos reprodutores do passado

!chegámos

sexta-feira, fevereiro 18, 2005

metrónomo # 23 

austerlitz/altifalantes/última chamada:
bordeaux – bayonne – hendaye – irún – lisbonne
vislumbro a assombrosa bagagem – grande
caixa secreta de livros num chapéu – furtivas palavras desatadas
em pequenas prateleiras
de jardim no terreiro da guerra
?palavras que hás-de dizer
– sinto subir os degraus da carruagem
todo o peso da tua melodia ambulante
hércules com o seu mundo de queridas imperfeições
ao colo

é quase noite – sei
que vens aí – nos altifalantes de austerlitz
poemas de comboio/bordeaux – bayonne – hendaye – irún – lisbonne
sei
simplesmente por desejar
que vens aí

metrónomo # 22 

milionários de todo o mundo morram
em cadeia
que o almofadado veludo interno dos caixões que comprarem
seja a tortura das almas dependuradas
que veias secas se enrolem nos vossos pescoços/nos vossos rostos maquilhados
nada mais ostententarão que o roxo de um sangue incoagulável nos olhos
que sejam perseguidos por uma eterna sede
pela própria eternidade sem o repouso do inferno
ou das chamas do paraíso – nem sequer a remota oportunidade
da reencarnação vos seja concedida

afinal não –
milionários de todo o mundo que nunca morram
que a justiça enfeitiçada que vos há-de rodear
seja a vida eterna nesta terra
e que a loucura não vos salve
nunca
do medo

metrónomo # 21 

não ouso sequer perturbar a tua imobilidade
escuto com toda a clareza a metamorfose
que se desenrola em ti enquanto
te desamarras e rompes o rodeio
estremeces-me brutalmente
– és o único diamante que riscou a minha pele

quinta-feira, fevereiro 17, 2005

metrónomo # 20 

era uma taça onde guardava preciosas gemas e acendia
velas e purificadores paus de incenso
vivi numa casa – ?como direi – excelsa
da cama podia contemplar cada pedra enquanto
aprendia a adormecer à luz daquele som de chamas e reflexos prismáticos
durante o sono – a casa era taça e eu próprio
gema
olho-de-tigre – bolbo de topázio nos meus olhos

metrónomo # 19 

sento-me no escuro ruminado de um céu de cinzas
sdssj090745.0+02450
e repouso
no nome
desta estrela que foge da via láctea a setecentos quilómetros por hora
pressentindo a tristeza plena
da floração terrestre
sdss
j09
074
5.0+
02
45
0
e a cadeira estremece – tudo estremece à sua furibunda passagem
o líquido no ventre das mães
lança-se no vácuo pelo impulso louco dos filhos
um dia lembraremos
com uma incendiada memória infantil
o momento exacto em que uma estrela refractária
pôs em marcha o seu plano de livre flutuação
impondo aos astros o seu próprio campo de voo
lembraremos o dia
em que se tornou pele
a possibilidade/o exemplo extremo
do sangramento de uma roda de poeiras radioactivas
revoltando-se contra o trono do próprio sol
hoje soubemos que a fuga é possível
uma estrela quebrou violentamente os laços
e desertou de um exército de obediências agonizantes
respirou
a setecentos quilómetros por hora segue a esperança
de todas as desobediências
e o meu coração acelera
transborda de electricidade
não tem destino esta estrela – não tem comando
voa com a liberdade radical dos que reclamam a necessidade primacial
da deserção
do poema

metrónomo # 18 

deteriorei o corpo em passos infusos
procurando a fonte que unia o nosso rútilo olhar
derivo como uma constelação de leão frente
a um espelho que nada reflecte
o mais ínfimo aceno das aves provoca a desaproximação solar
com uma placa de granito sobre o torax
escrevo cartas – tento esticar-me até aos lábios das árvores
e dos cristais
e caio sem um vislumbre
é preciso anunciar que havendo caminhos
é urgente não os percorrer

quarta-feira, fevereiro 16, 2005

metrónomo # 17 

tenho na memória das mãos
cores insubstituíveis
elevadíssimas temperaturas agarradas às falanges
cicatrizes audíveis
veios de uma alegria acontecida
pequenos registos de um passado artesanal
cores invulgares
serenamente por dentro
vivas

terça-feira, fevereiro 15, 2005

metrónomo # 15 

ontem estiveste na praça dos penitentes
ao meu encontro –
[eu sei que é impossível/
ainda não é a bênção da loucura
talvez tenha sido aquela luz com a cor da galena/
o nevoeiro – sei lá]
– vi-te perfeitamente – senti-te
entrámos no café – a mesma mesa
as mesmas primeiras palavras
a mesma tília quente – a noite a aproximar-se – as mãos geladas
[a solidão não conta
não foi uma visão de desespero/
não quis voltar atrás]
– se nos tivesses visto
o empregado trouxe as chávenas
o
execrável
bule
de
inox/o
a-ç-ú-c-a-r
acendemos cigarros...éramos nós
fomos nós até que
voltei a fugir – tenho que fugir
?percebes
– não há senão fuga
e medo
do escuro de ametista que antecede a queda das estrelas
mundo de outras visões
estou a consumir-me como se inalasse um gás
o gás
o pânico final

metrónomo # 14 

as deslocações – a falta de dinheiro – a ausência de cor na
ponta dos dedos – dias parados/mudez
são tantas as coisas que
caem por terra sem a tocar
se os gestos tivessem a voltaica potência dos limões... das sementes

os gatos inventam rosas para se orientarem na cegueira
dos seus olhos vulvares – e encontram caminhos
picam-se
nessas fabulizadas roseiras – crêem-se
físicos no encontro com
pequenas felicidades delirantes

olho uma romãzeira lutando para cumprir a sua promessa de multiplicação
vejo como tudo está primordialmente arquitectado
para a existência de uma estrutura de doçura plena
de morangos de folha perene ou estradas desérticas onde a areia
absorve compassiva a obrigatoriedade de acordar

os castanheiros da índia observam-nos com as suas folhas agudas
mas há tantas coisas a consumar
de que serve olhá-los/responder-lhes/se no limite solar
o que prevalece é a exigência material de uma conta telefónica?

o mundo não foi criado
foi aparecendo
e desaparecendo
não há já espaço para a beleza navegações de espanto
nem lagos de deslumbramentos simples
secou o mar que fluía na cavidade uterina do cérebro

esta manhã gostava de ter percorrido uma rota concreta/como a dos cometas
ter-te encontrado num pontão sobre um rio de peixes vermelhos
gostava de ter tido a oportunidade de circular em imaginários percursos
pedestres de coloração oblíqua
mas a realidade/o dever
é a negociação implacável do milho com os pombos
instituição bancária
de asas cinzentas
e bicos contadores de moedas amarelas

segunda-feira, fevereiro 14, 2005

metrónomo # 13 

desenterram os esqueletos de évora
outrora sepultados entre colunas
na ânsia de descobrir a origem dos milagres
com testes de carbono 14
profanam os poços as basílicas subterrâneas
as crípticas células de monges sem credo
portadores de antiquíssimas
verdades

[antes/entre os submersos cadáveres e o éter
estendiam-se braços na pura ramagens dos plátanos]

em cada exumação é despertada uma torrente de imprevisíveis
movimentos intra-terrestres
movem os ossos acordados apontando-lhes espadas – desafiando
lentíssimos terramotos
évora que já foi centro e cruz cumprirá
a adivinhação profética
revelada nos reluzentes frescos das suas casas pintadas

metrónomo # 12 

enquanto julgo tecer versos com
inúteis imagens de desespero e derradeiras tristezas
preenchendo com nódoas de caracteres
resmas de honestas hóstias de papel
caem maduras
as bagas concêntricas da palmeira-das-vassouras
talvez devesse partir já
e procurar um lago de cerejas verdes
onde velejassem em liberdade os verdadeiros cânticos estivais –
essência meridiana do poema em revolução

domingo, fevereiro 13, 2005

metrónomo # 11 

os meus olhos coagularam durante os breves instantes do sono
não posso ter a certeza de que já seja dia
penso que a vida é tremenda
não mais tremenda que a das maçãs
mas eu penso
e todos os impulsos eléctricos do cérebro
engendram uma vida superiormente tremenda
preso a estes eléctricos cabos cranianos
saberei exactamente o que é uma maçã?
autorizei todos os terrores/todas as hipóteses
cri em todas as efabulações do temor
?poderei sequer ter a certeza que são meus os meus pensamentos
é a obstrução dos líquidos que envolvem a íris
que torna abafado o grito
e só pelos olhos o socorro é audível
«não estás sozinho/sentes-te sozinho/o que é diferente»
disseram-me
e a seguir
?que gesto? que odor?
como é absurdo pensar na salvação
tão absurdo como pensar na utilidade do martelo
ou recusar a eficácia do parafuso
NÃO ESTOU SOZINHO
MAS SINTO-ME SOZINHO o que é diferente – eu creio
?devo então assumir que a leveza existe
que nenhum órgão interno irá desistir da sua laboração?
?que ainda antes de uma outra noite os meus olhos
retomarão o seu percurso liquefeito
deverei contar com a claridade odorífera das macieiras?

sábado, fevereiro 12, 2005

metrónomo # 10 

cada acto age como um gás invasor
no sangue que corre pelo engenho circulatório/exangue
e frágil das crisopas de dorso macio e asas membranosas
asas-telhado/casa dos amantes das velhas causas

o acto é a arma fulmínea dos braços incapazes

sob os filamentos caudais do insecto
protegem-se como dentes-de-leão no colo das suas mães
os infusíveis
formando-se uma rede de encontros encobertos
nas noites dos jardins

em casas seguras as crisopas
põem ovos
espalham a possibilidade – ainda que remota –
de uma nova irmandade de seres macios e fecundos
futuros telhados para um amor insubordinado
desses núcleos obreiros irradia uma luta vencida
e a derrota
é a própria essência seminal que transporta esta
teia de cristal-de-rocha
o azul perene de uma doçura infantil
operária
inicial

sexta-feira, fevereiro 11, 2005

metrónomo # 9 

a tristeza é o crânio do poema
não ficará nada
nem a memória d
os nós dos
dedos entre/laçados
no ouro do nosso tesouro

metrónomo # 8 

é preciso preparar o momento em que os corpos se desligam
e conhecer a beleza profunda do limite
há um tempo em que tudo se liquidifica
numa amálgama de trovoadas/em prantos
arrebatadores que fazem acreditar que tudo
o que existiu e existe –
existirá
há um momento em que os corpos são só pele e é
o reconhecimento das suas fontes de calor que os faz enlaçar
e circular como balões de hélio no céu
há o dia contido na tristeza dos olhos/o irremediável arrefecimento amoroso das memórias
em que as lágrimas e a língua se enrolam por dentro
num desejo desesperado de perpetuar a irreplicável
explosão primordial
é o momento derradeiro em que se desliza em sentido contrário
e o medo absorve os membros
a linfa
e os olhares se recusam
que lamento pode haver quando as andorinhas-do-mar-ártico
partem sem regresso nos princípios de maio para se encontrarem com as costas marítimas da europa do norte?

quinta-feira, fevereiro 10, 2005

metrónomo # 7 

na índia um jardineiro caminha entre as túlipas gigantes
dos jardins mughal – túlipas vermelhas abertas ao sol
em lisboa um jardineiro caminha entre jasmins acabados de nascer
junto ao rio
túlipas/jasmins e dois homens jardineiros de espanto
a milhares de quilómetros de distância
haverá garças nos lamaçais dos jardins mughal?
haverá sapos selvagens no lodo do tejo?
ao longe num dos pontões junto à ponte
duas túlipas – dois pontos vermelhos
beijavam-se como jasmins em nova-deli


metrónomo # 6 

...campânulas com breves inscrições pétreas...
...datas cravadas em argila...
...um camaleão entre pés transeuntes...


tinha sido um passeio curto numa tarde curta
tudo já esquecido/até hoje
que voltei a sonhar com rabat e o cemitério de azulejos verdes
onde repousa o grande sultão negro/a febre
ceifou-me
a
memória dos rostos mas sinto a presença
desses acompanhantes misteriosos – sinto-os
tão fisicamente
como se tivesse uma mancha pulmonar
e cada onírica poeira rompesse a pele numa tosse sangrenta/numa expectoração visceral –
soltando em mim um suave odor a flor-de-aloés




terça-feira, fevereiro 08, 2005

metrónomo # 5 

imaginava o frio com uma científica beleza
desenhava cabelos nas mãos/traços contínuos
queria pintar gárgulas – torná-las azuis
abrir em mim um sulco de grafite/ser tudo
no instante em que ouvisse o sino
da sé e desdobrar-me em infindas transparências
radiográficas
sonhava ser pedra e por dentro dela [de mim] ver o
sangue circular pausadamente –
imaginava o frio como o pronúncio da força
máxima do voo/de um vento que viesse
imaginava a possibilidade libertadora
de uma verdadeira tormenta que fulminasse
os dias sem verde/insones/mutilados
mas entre mim e a realidade haverá sempre um vidro inquebrável
nada mais que a proclamação da infertilidade: a palavra
o desejo imaginado


entrudo 



"O Medo Devora a Alma"
de R. W. Fassbinder
(cartaz de 1972)

metrónomo # 4 

as noites sangram trémulos cardos no peito de uma pureza
já quase extinta – como estacas no amor
sou como uma coruja-do-mato com o seu canto de presságio
fazendo sucumbir nas suas garras a ínfima parte do que restava
da iluminação
sinto o crescimento diário dessas garras e dos grandes olhos negros que tudo vêem
no desfalecimento solar
é a funesta acção das asas cor de camurça – a desproporção
da cabeça em relação ao corpo-coruja/o provocado desequilíbrio
de um voo de rapina descontrolado e sem rota
descubro-me ao espelho um ser predador
afundando impotente o navio das pequenas felicidades que
arrebatei à claridade
sobrevivo
sorvendo o sopro de uma candeia por entre raízes
esqueletos amorosos clamando de dor contra mim
quando for disparado o lucífugo tiro de misericórdia
já estarei preso à terra esperando os dentes inocentes dos cães
que arda – eu – nesta amálgama de penas
no momento do impacto será em ti que penso –
eis o que de nada serve – apenas mais um canto
uma derradeira prestação musical – a inútil oferenda dos mortos
que – já tarde – sonham assumir perante os que amam
a forma espectral das andorinhas-das-barreiras


segunda-feira, fevereiro 07, 2005

metrónomo # 3 

gostava que me dissesses qualquer coisa [ou]
que uma placa de mel pudesse ser a fundação de um edifício
[ou] que as estrelas na sua cadência centrífuga
parassem um átimo o ciclo dos seus desastres

se chego ao fim do dia é porque o relógio pára
à minha frente tenho um muro de espíritos que não
me puxa para dentro dele – nada
muda o sentido dos sorrisos
uma casa onde as portas fossem só entradas
e toda a gente entrasse e fosse picada
– um nada cheio/uma casa possuída por abelhas furiosas
com gente e gente a entrar e entrar e depois
acordadas das suas íntimas apatias por ferrões
de uma morte secreta num espaço cubicular

à minha frente tenho uma mesa pensante
que é o contrário de todo este desejo de floração
um rectângulo inteligente que cala o grito e metamorfose
das bandeiras em agitação desesperada

o relógio parou/como o dia eu cessarei a mecânica esquelética/sei
que a madrugada será oval como são ovais os bicos dos patos de bico oval
por dentro do sangue as veias correm álgidas levando ao coração
um leveza inteira
e é nesse percurso gélido
intrasanguíneo
que reside o sentido último do verso


domingo, fevereiro 06, 2005

metrónomo # 2 

abri-lhe uma asa com todo o escrúpulo:
alares/escapulares/subcaudais/supra-alares secundárias
rémiges primárias/rémiges secundárias/rémiges terceárias
não havia dúvida
uma asa
pousei-o no cinzeiro e observei-o:
crista/bico/nuca/dorso/pescoço/franjas alares/uropígio/peito
rectrizes externas/flancos/ventre/mento e garganta
um ser voador não havia dúvida – um guincho comum
trinta e oito centímetros de comprimento

as beatas e a cinza fria no cinzeiro não pareciam incomodá-lo
achei estranho que tivesse a cabeça parda pois os guinchos no inverno
assumem uma plumagem branca e é janeiro – três graus negativos...
acendi-lhe um cigarro que fumou até os olhos se raiarem de vermelho
o café estava cheio/tinha mais coisas que fazer – nada a conversar
levantei-me/deixei-lhe mais dois cigarros sobre a mesa e saí
agora que está escrito não pensarei mais nisto
tentarei ignorar a visão que ainda tive quando na procissão
do angelus o voltei a ver num trono
coberto de jóias
venerado à passagem do andor
ao som de ladainhas em honra do arcanjo raphael vivo e entre nós


sábado, fevereiro 05, 2005

metrónomo # 1 

esta noite ergueu-se uma ruidosa pirâmide de sal – só um
alcatraz investia sobre a ela suportando sem dor as queimaduras
procurando – submarino – excrementos e vísceras animais
perto da base térrea do edifício
quando emerge traz nos dentes um cão/uma mão/algum objecto
insignificante – colares ou casacos de verão
furiosamente negras/necrófogas – as gralhas nos seus chamamentos profundos
velejam em volta do pico mais íngreme da pirâmide
esperam a carne putrefacta –
os pequenos mamíferos/peixes em prolongados afogamentos
a cidade percorre o seu habitual deserto orbital

ei-la a cidade – ausente num contínuo cansaço coronário

antes das chuvas a estrutura aspirará a catedral/a casa celeste
a panteão de grandes figuras – eu – nem uma coisa nem nada
volto os olhos para o frio nos dedos atormentando-me com
os voos de que sou incapaz
se obrigado a tomar partido
estaria do lado do colossal andorinhão de asas de gadanha
e cauda de forquilha que sobrevoa o rio ali tão perto
os andorinhões voam permanentemente e quando estão exaustos
as suas fracas patas impedem-nos de retomar o voo e geralmente morrem

ei-los – os sages


quinta-feira, fevereiro 03, 2005

breve gramática das raízes # 40 (alterado) 

crianças lendo histórias de dragões
em exíguos cadernos clandestinos
desenham animais refractários – serpentes/andorinhas/seres
com quem só elas contactam e sabem retratar
será nas suas bocas infantis
que a explosão fundadora das chamas renascerá
secretamente lançarão o estrondo abrasador – a ígnea vibração musical
do suave enraizamento das araucárias


quarta-feira, fevereiro 02, 2005

breve gramática das raízes # 39 

aprendi a amar o brusco instante das fracções de segundo:
as borboletas
quem pensa no tempo perante uma borboleta-amarela?
sabe-se que têm um voo possante e um abraço rápido/que vivem
nas montanhas ou nos lados acidentados dos montes/mas
quantas voltas darão sobre si próprias num só adejo?
quantos olhares estenderão ao sol? quantas rosas beijarão entre a aurora e o crepúsculo?
afirmamos que duram um dia – horas...
mas são o símbolo matemático da infinidade
da vida perene
do irrestrito desassombro
que vale o cronometrado tempo humano comparado com a imensidão
da existência de um insecto/gloriosamente mortal/triunfantemente frágil –
implacavelmente essencial



terça-feira, fevereiro 01, 2005

breve gramática das raízes # 38 

toda a ameaça começa com um simples vocábulo - a glória
da besta é a primeira palavra/o som das palavras é perene
e o seu poder inextinguível/com esse nervo se ergue
o trasgo
golfando – candidamente – um primeiro vocábulo
que se vai transformando na
força das grandes ondas em plena tempestade
só lama
só lodo/depois
as unhas do animal contorcem-se
em lutas de hacaneia/como uma vibração repetida
um mantra de injúria e violação

sangue odioso o do verbo

a verdadeira condenação diabólica não é
a eternidade infernal e as suas ingénuas chamas
mas o dom de proferir a primeira palavra


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